A botija
Quando olhava pra mulher do padrinho, não tinha jeito: sentia aquele estremecimento, que o percorria de cima a baixo, e ficava ali, de queixo caido, olhos fixos nas belas e bem torneadas pernas da dona Toinha, ainda fogosa nos seus quarenta anos, e que fazia questão de mostra-las, remexendo-se, de vez em quando, dentro da rede armada do alpendre, abrindo e fechando as coxas, no que dava para ver até a cor da calcinha.
- Ah, a Toinha... - dizia, de si para si, enquanto conversava com Pedro, seu padrinho, que não se cansava de fazer perguntas a respeito da sua vida e dos seus negócios.
A curiosidade era natural. Afinal, saira dali, de um pequeno sítio vizinho ao de Pedro, há cerca de quinze anos (menino ainda, um frangote quase imberbe, com dezesseis anos), e se mandara para São Paulo. Já àquela época, mas mantendo, contudo, todo o respeito, o Paulinho não tirava os olhos dos bonitos seios de dona Toinha que, de tão grandes e carnudos, pareciam querer, a todo instante, saltar pra fora do decote.
- Paulinho, você precisa tomar cuidado. Pra quem sempre viveu num sítio, a coisa fica mais difícil ainda. Dizem que São Paulo é uma cidade grande demais.
- Pode ficar tranquila, madrinha. Eu vou tomar cuidado e um dia voltarei aqui.
O olhar que a comadre lançou sobre o afilhado naquele instante de despedida, não foi, certamen-te, o mesmo de uma mãe que se despede do filho, tanto assim que o Paulinho o guardou para sempre. Ali-ás, foi da dona Toinha que levára, dali, daquele pequeno sítio perdido no interior da Paraíba, as melhores recordações. Como esquecer as noites em que, na ausência dos pais e ficando aos cuidados dos padrinhos, adormêcera em seu colo, com ela a alisar-lhe suavemente os cabelos ? E os banhos no riacho, quando, es-condido atrás de uma moita, observava a madrinha, completamente nua, saindo das águas para deitar-se na relva, recebendo, por todo corpo, os primeiros raios de sol daquelas manhãs de verão ? E que dizer daquele dia em que, dando a entender que o vira escondido, mostrara-se mais ainda, alisando os seios e a vagina, como se a descoberta tivesse aumentado o prazer de expôr-se ?
E foi assim - com a imagem da dona Toinha na retina - que o Paulinho viajou para São Paulo, em busca de emprego, despedindo-se dos pais e dos padrinhos.
Valeu o sacrifício de percorrer, quase todos os dias, cerca de quinze quilômetros, montado na garupa de um jerico - saindo de casa, muitas vezes, antes do alvorecer ( bem depois, é claro, de dar uma espiada no banho da madrinha), para chegar na hora à escola, que ficava na cidadezinha mais próxima. Com o primeiro grau completo e mais suas habilidades como marceneiro, isso sem falar numa boa dose de sorte, Paulinho arranjou emprego numa grande fábrica de móveis, ganhou a confiança de todos, tornou-se Presidente da empresa e, com a morte do dono, um viúvo sem filhos, que o adotára como único herdeiro, abocanhou uma verdadeira fortuna. Mandou buscar os pais que, já velhinhos, vieram a falecer cinco anos depois, embora morassem, com todo o conforto, numa majestosa mansão no Sumaré.
Realizado na vida, desfrutando de tudo o que o dinheiro podia oferecer, não tinha porque lembrar-se da dona Toinha. Mas lembrou-se. E as imagens da juventude não lhe saiam mais da cabeça. Até que resolveu voltar ao pequeno sítio.
- Nunca pensei que meu afilhado chegasse de volta do sul, rico e famoso, dirigindo um carrão desses ! - disse o Pedro, abraçando com força o Paulinho.
- Rico, famoso e mais bonito ! - acrescentou dona Toinha, beijando-lhe o rosto.
A partir daí, foram longas conversas no alpendre, onde Paulinho contou tudo sobre sua vida e ficou sabendo dos apertos do padrinho, que tivera de hipotecar o sítio para saldar dívidas
de banco, e agora não tinha vinte mil reais para retirar a hipoteca.
Pra ele, não seria difícil emprestar o dinheiro ao padrinho. Só que o Pedro era um típico pequeno agricultor do interior. Nada de ajuda em troca de nada. Nada de receber qualquer coisa sem nada a pagar. Para o Paulinho, o que viria em troca seria dona Toinha. Coisa que o padrinho jamais aceitaria. Estava criado o impasse. Tinha os vinte mil reais e queria da-los de mão beijada. Só que o Pedro não os aceitaria. E se a compra incluisse a mulher, seria capaz de expulsar o afilhado de casa na base da peixeira.
E o que é pior: consciente de que o Paulinho não era mais nenhuma criança - e notando, sem dúvida, o alvoroço da dona Toinha com sua visita -, o Pedro tratou de tomar as suas providências, e não largava os dois sozinhos por um minuto sequer.
Só que o Paulinho não dispunha de muito tempo. Resolvêra alguns negócios em João Pessoa e, na sexta-feira, viajára ao interior do Estado, pensando em encerrar tudo até domingo. Só que o primeiro dia já estava começando, com ele, Pedro e dona Toinha, tomando o café da manhã, ali, no alpendre, vendo o sol nascer.
Foi quando o padrinho falou:
- Voltei a sonhar com a botija.
A botija ! Desde seus tempos de menino que o Paulinho ouvia a história daquele sonho. Uma botija das grandes, enterrada em baixo do umbuzeiro, lá na beira do riacho. De vez em quando, especialmente quando se encontrava em dificuldades financeiras, o Pedro voltava a sonhar com a botija.
- Terei que ir sozinho, à meia-noite. O dinheiro tá lá. Muito dinheiro !
- E por que não vai até lá e arranca de vez essa botija ? - incentivou Paulinho.
- O dinheiro ia chegar numa boa hora - acrescentou dona Toinha.
- Vamos lá, padrinho. De que tem medo ? - desafiou o afilhado.
Pedro pensou por um momento e, batendo com a mão direita no peito, decidiu:
- Eu vou lá hoje à noite. Vou acabar de vez com essa história !
Por volta das nove horas, o Paulinho saiu de carro, dizendo que ia à cidade, e parou ali perto, num trecho da pequena estrada que desce pro riacho. Abriu a mala do carro, de onde retirou pás e picaretas, além de duas bolsas de couro, nas quais colocou certas quantidades de dinheiro, em notas de cem. Conduzindo uma das bolsas, além dos instrumentos agrícolas, seguiu em direção ao velho umbuzeiro.
Faltando dez minutos para meia-noite, Pedro, conduzindo uma enxada e uma pá, saiu de casa, dizendo:
- Vou arrancar a botija.
Assim que o Pedro se perdeu na escuridão, dona Toinha deixou-se cair na rede, bem à vontade, abrindo mais ainda as belíssimas coxas que deus lhe deu, e lamentou:
- Ele deve voltar logo.
- Acho que não. Essas botijas sempre são difícieis de ser encontradas. Especialmente esta.
Paulinho foi se aproximando da rede e dona Toinha, estendendo as mãos, com os olhos acesos pelo desejo, fez o convite:
- Vem !
Ali mesmo, na rede, e depois rolando pelo chão, como loucos, os dois se amaram apaixonadamente, como se quisessem, naqueles minutos que se escoavam, recuperar todo o tempo perdido, ao longo dos anos.
Quando ainda tentavam recuperar as forças, estendidos na cama, ouviram a voz de Pedro, ao longe:
- Toinha ! Paulinho ! Achei a botija !
Vestiram-se rapidamente, pentearam-se e voltaram ao alpendre, justo no instante em que Pedro jogava o monte de dinheiro dentro de um balaio.
- Tá aqui o dinheiro, mulher ! A botija era verdadeira ! Vamos pagar a hipoteca !
Às primeiras horas da manhã, o Paulinho se foi. E Pedro, ninguém sabe porquê, jamais parou para pensar como é que naquela botija tinha exatamente os vinte mil reais que ele tanto precisava para pagar a hipoteca.
Houve quem estranhasse:
- Botija com dinheiro de hoje ? Em real ?
Mas ficou por isso mesmo.
Só que a botija maior estava por vir.
Pedro vendeu o sítio e foi para São Paulo, a convite do afilhado, para tomar conta de uma granja, onde ele e dona Toinha passaram a viver.
Com direito à visitas semanais do Paulinho.
E sem mais sonhos com botijas.
Sem mais nada.