terça-feira, 29 de junho de 2010

CRÔNICA DA SAUDADE


UMA NOITE QUE FICOU

Existem pessoas que chegam à esta vida e logo começam a formar o seu destino, independente das condições financeiras que a cerquem, passando a fazer tudo o que tem que ser feito com extrema rapidez, principalmente quando o seu período de permanência entre nós é bastante curto para que se possa atingir todos os objetivos traçados.

Dolores Duran foi uma dessas invulgares inteligências, voltadas para a música e para a poesia, mas que teve que lutar contra o tempo – bastante exíguo em sua rápida passagem pela vida – para que pudesse deixar, para a posteridade, algumas das mais belas páginas da música popular brasileira.

Tendo nascido no dia 06 de um mês de junho como este que estamos vivenciando, frio e chuvoso, na rua do Propósito, no bairro da Saúde, no Rio, Adiléa da Silva Rocha – era esse o seu verdadeiro nome – começou a cantar desde os três anos de idade, chamando a atenção dos pais e dos amigos. Aos dez anos, incentivado por um amigo da família, participou do programa Calouros em Desfile, de Ary Barroso, interpretando uma fantasia mexicana intitulada Vereda Tropical, com letra em português e espanhol. Não deu outra: tirou a nota máxima, recebeu elogios de Ary e 500 mil-réis, o que lhe abriu caminho para que aparecesse em outros programas em várias emissoras cariocas.

Ao participar do concurso À Procura de uma Cantora de Boleros, organizado por Renato Murce na Rádio Nacional e tendo facilidade em pronunciar palavras em inglês, francês, italiano e espanhol, a nossa Adiléa, menina ainda, aos 15 anos, alcançou grande sucesso e, ao ser convidada para trabalhar em shows na Buate Vogue, já havia adotado o pseudônimo de Dolores Duran. Ao mesmo tempo, César de Alencar conseguiu coloca-la sob contrato na Rádio Nacional, ganhando 150 mil-réis por mês. Tornou-se, em pouco tempo, uma das mais consagradas cantoras noturnas, apresentando-se, diariamente, nas mais famosas buates do Rio de Janeiro. Foi no final de 1951 que gravou seu primeiro discos, com os sambas Que bom Será e Já Não Interessa, pela gravadora Star. Só a partir de 1954 é que Dolores começou a gravar músicas de muito sucesso, A Canção da Volta, de Antonio Maria, O Amor Acontece, de Celso e Flávio Cavalcanti e Manias, dos mesmos autores, Se é Por Falta de Adeus (a primeira música de sua autoria), Canção da Volta, de Ismael Neto e Antonio Maria, Por Causa de Você, de parceria com Vinicius, além de Estrada do Sol, Idéias Erradas e Castigo, Não Me Culpes e Solidão, todas de sua autoria, que foi sucesso inclusive nas vozes de várias amigas, como Marisa Gata Mansa.

Ao compor A Noite do Meu Bem, em 1959, diferenciando-se das outras composições que fazia questão de dividi-las com músicos e letristas da sua amizade, Dolores Duran fez questão de faze-la sòzinha, como se fosse uma marca na sua vida – uma música que haveria de eternizar o seu nome. Assim que a gravou, aos 29 anos, no dia 24 de outubro de 1959, chegou em casa cansada, deitou-se para repousar e não mais acordou.

A noite de Dolores ficou para sempre na lembrança de todos nós.

sábado, 19 de junho de 2010

O CONTO DO MÊS


A justiça

dos homens

N aquele dia, após uma semana de constantes julgamentos, o que Pôncio Pilatos mais desejava é que nada mais acontecesse que pudesse exigir a sua presença. Sentia-se cansado e seu corpo, não muito jovem, pedia paz e descanso, o que não era fácil de se conseguir naqueles dias turbulentos vividos em Jerusalém, quando o povo, sem acreditar em mais nada, temia apenas o poder de César e exigia provas da sua força, através da condenação pública dos seus inimigos.

- É verdadeiramente insuportável - dizia a um dos sumos-sacerdotes - essa incontrolável ânsia do povo, que não se cansa de exigir o sangue dos seus pretensos inimigos para minimizar a pobreza, a ignorância e a desesperança em que vive.

Ante o silêncio do seu interlocutor, Pilatos andava, vagarosamente, pela enorme e luxuosa sala onde costumava receber amigos e, ao passar por uma poltrona, adornada com frisos de ouro, deixou-se cair pesadamente, levando as mãos à cabeça, já bastante calva.

- Se a gente tivesse o poder de julgar sempre com justiça, de acordo com a nossa consciência, até que dava para suportar tantos problemas. Só que não é assim. Dependemos da vontade do povo. Aqui, o que menos importa é o voto da Corte. O Sinédrio emudece. Herodes se cala. E a vida de mais um homem acaba em minhas mãos. E eu, para tomar decisões, sou obri gado a ouvir a voz da turba e a guiar-me por ela, que quase sempre está a exigir a morte de mais alguem, seja culpado ou inocente, para seu capricho ou divertimento.

Timóteo, sendo sumo-sacerdote, mas amigo de Pilatos antes de tudo, interveio com ponde-ração:

- Não deves permitir que tais conceitos cheguem aos ouvidos de pessoas ligadas a Cesar e tu sabes muito bem porquê.

- Eles chegam somente a ti, em quem confio, e a quem tenho a ventura de chamar de amigo.

- E tu sabes que concordo plenamente com o que dizes e que são minhas as tuas palavras quando criticas a inutilidade

desses julgamentos.

Pilatos voltou a levantar-se e, com as mãos às costas, começou a caminhar em torno do amigo, sempre demonstrando a sua revolta:

- Roma está inquieta. É forte, é poderosa, é rainha absoluta, mas é, ao mesmo tempo, frágil, já que não esconde o seu temor quanto aos fantasmas que ameaçam o seu reinado. E as leis, antes feitas para coroar a justiça e premiar os inocentes, agora existem para acomodar os políticos, diminuir as tensões e atender aos nem sempre justos anseios que emanam do povo sofrido e revoltado.

- A teu ver – concorda Timóteo -, a justiça, agora, não passa de uma farsa. Os julgamentos continuam apenas para satisfazer a sociedade, mas não transmitem a verdade: os inocentes tornam-se culpados, os culpados são julgados inocentes e a impunidade, de certa forma, passa a ser justa, desde que as aparências a envolvam com seu manto, emprestando-lhe o brilho da verdade e a força de um ato legal.

- É isso ! - quase gritou, num ímpeto, Pilatos. É isso, sim ! É essa farsa que me atormenta ! Se sempre julguei de acordo com a minha consciência, como posso, agora, julgar de acordo com o jogo do poder e com os caprichos do povo ?

Com o dedo polegar sobre os lábios, como a pedir ao amigo que falasse mais baixo, Timóteo apenas ponderou:

- A nossa revolta é justa, só que não podemos deixa-la sair daqui dessas quatro paredes, para que não chegue ao conhecimento de César.

Abrindo a porta da sala, um centurião anunciou que Pilatos está sendo convocado para mais um julgamento.

Angustiado, seguindo em direção à sala das sentenças, apenas dizia consigo mesmo:

- Preciso voltar a ser justo.

Entrando na sala, viu-se diante de um homem magro, de altura mediana, moreno como a maioria dos judeus, com seus longos cabelos negros a cair-lhe sobre os ombros, barba e bigode à moda dos nazarenos, vestido com uma túnica branca, que o cobria do pescoço aos pés. Um tipo igual a tantos outros que já condenára à morte ou a outros castigos, atendendo à vontade do povo. Um, dentre muitos que já havia levado à cruz, sem nenhuma objeção. Só que, desta vez, ante sua revolta íntima, seria diferente. Haveria de reagir. Colocaria obstáculos. Daria uma chance à justiça.

- Que fez esse homem ?

- Esse homem - disse um dos presentes - foi encontrado por nós tumultuando os locais por onde tem passado, impedindo que sejam pagos tributos a César e apregoando ser um novo Messias... um novo rei !

Olhando nos olhos azuis do acusado, Pilatos perguntou:

- Tu és mesmo o rei do povo judeu ?

- Tu o dizes - respondeu.

Virando-se para os sumos-sacerdotes e para as pessoas que se acotovelavam no pátio, Pilatos declarou:

- Nada há neste homem que mereça condenação.

- Por toda a Judéia... da Galiléia até aqui - gritou uma voz no meio do povo – ele tem suble-vado a todos, pregando a desobediência a César !

- Ele é natural da Galiléia e, como galileu, o seu julgamento depende da autoridade de He rodes. É é para quem o envio. - concluiu, afastando-se.

Ao retornar ao convívio de Timóteo, novamente a sós, Pilatos reacende a sua revolta:

- Por acaso, lembrei-me que Herodes se encontra por aqui. Mas nada mais fiz, senão ganhar um pouco de tempo. Logo, Herodes o devolverá, que ele – tu bem sabes – não é de se meter em decisões que envolvam a vida ou a morte.

Colocou um pouco de vinho em duas taças e, entregando uma delas ao amigo, convidou-o:

- Que tal um brinde à justiça romana ?

Mal haviam sorvido a bebida, a porta, mais uma vez, é aberta, e Pilatos é convidado, de novo, a comparecer à sala das sentenças, onde lá estava, novamente, o prisioneiro, autorizado, por Herodes, a receber o julgamento.

Dirigindo-se aos sumos-sacerdotes, aos chefes e ao povo, deliberou:

- Vós me trouxestes este homem como se ele sublevasse o povo. Ao interroga-lo, nada achei que o fizesse merecer a condenação. Herodes tambem não, tanto que o mandou de volta. Por isso, vou infligir-lhe um castigo e solta-lo, como manda a lei.

A multidão, a uma só voz, explodiu em protestos.

- É um sublevador !

- Seu castigo é a morte !

- Deve morrer na cruz !

Num gesto extremo, Pilatos apontou para um homicida que ali também estava para ser julgado.

- Condenemos este homem à morte, mas libertemos o nazareno, que nada fez para merecer tamanha condenação !

Mas a multidão insistia, aos gritos, pela pena de morte, e o clamor que se ouvia crescia a cada instante:

- Crucificai-o ! Soltai o criminoso, mas levai-o à cruz !

Vencido, mais uma vez, pela vontade da turba, Pilatos ordenou que o assassino fosse solto e o inocente nazareno condenado à morte.

- Lavo minhas mãos.

De volta à sua sala de repouso, tendo, ao seu lado, a figura do amigo Timóteo, ficou, por alguns minutos, no mais profundo silêncio, até que, com a face marcada pela angústia, disse:

- Tu vistes e ouvistes tudo o que se deu. Pela primeira vez, tentei impor a lei... a justiça. Ao invés de simplesmente balançar a cabeça para confirmar a sentença, busquei iluminar o coração dos homens. Só que a escuridão que o envolve tornou-se impenetrável à luz. Preferiram soltar o bandido e condenar o inocente. Que mais posso fazer, senão lavar as mãos e desejar que, um dia, tudo isso se modifique ?

- Não acredito - acrescentou, sem muito entusiasmo, Timóteo - que algo se modifique no futuro. Por mais que se aperfeiçôe, a justiça jamais será perfeita. Sempre haverá, no mundo, injustiça e impunidade. Em qualquer tempo, inocentes estarão pagando por crimes que não cometeram, e crimi-nosos estarão à solta, impunes e intocáveis.

- Parece que a humanidade já escolheu o seu caminho e começa a construir um mundo, onde apenas a vontade dos mais fortes prevalece - concluiu Pilatos, quase num lamento.

- Roma é o exemplo. César é a imagem dessa força.

Sem dizer mais nada, os dois amigos apenas se levantaram e, ante os gritos da multidão lá fora, dirigiram-se à sacada, de onde puderam observar a turba, frenética, conduzindo o prisioneiro ao calvário.

Já era quase meio-dia, mas a noite parecia estar chegando, tantas eram as núvens escuras que escondiam o sol.

À noite, na hora da ceia, Pilatos e Timóteo nem mais se lembravam daqueles momentos angustiantes vividos no período matinal.

- Seria bom que tu pudesses esquecer tudo quanto falamos pela manhã. Temos que viver as nossas vidas, de acordo com a vontade de César. Não podemos nos rebelar - concluiu Pilatos.

- Que seja assim - concordou Timóteo.

Conversando pouco, ao se servirem na mesa farta, os dois se entreolhavam, de vez em quando, como se quisessem dizer algo, mas pareciam se conter e continuavam calados, embora não escondessem uma certa aflição pelo silêncio que estava, não mais na sala, mas dentro de si mesmos, incomodando-os íntimamente.

Finalmente, Pilatos, sem suportar mais aquela ausência de palavras, quis saber:

- Aquele homem... aquele que morreu na cruz... como se chamava mesmo ?

- Não lembro - respondeu Timóteo, forçando a memória.

- Nem eu - confessou.

E concluiu:

- Mas isso não tem a menor importância.

- Não tem mesmo - concordou o amigo.

No dia seguinte, Pilatos estava novamente na sala das sentenças, onde dezenas de presos aguarda-vam julgamento.

E ele voltou a ser o mesmo, julgando de acordo com o povo.

Como sempre fizera.

Sem mudanças.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

CRÔNICA DA SAUDADE


TRISTEZAS DE JUNHO

De vez em quando, na abertura de um novo mês, costumo folhear o calendário da saudade – aquele que a gente tem guardado em notas e na memória – para saber quais foram as nossas perdas mais sentidas ao longo daquele período que se inicia, principalmente num mês como esse que está chegando, chuvoso e friorento, que costuma botar a gente pra ficar mais tempo em casa, encolhido ali, num cantinho, divagando com as lembranças de um tempo que já se foi. Neste início de junho não temos como deixar de lembrar aqueles que, ao partirem, tornaram-se mais presentes nas vidas de todos nós, principalmente através de musicas que marcaram as nossas existências, como é o caso de João Nogueira e Moreira da Silva, dois símbolos vivos da história do nosso mais tradicional e popular ritmo, que é o samba, e que até parece que combinaram em nos deixar num mesmo dia.

João Nogueira – cujo nome completo era João Batista Nogueira Júnior – foi um carioca da gema, nascido ali, no Méier, na zona norte do Rio, no dia 12 de novembro de 1941. Filho de um músico profissional, João nunca deixou de estar em contato com o samba e o choro, já que Pixinguinha, Donga e João da Baiana sempre freqüentaram a sua casa. Aprendeu a tocar violão com o próprio pai, que morreu quando ele tinha apenas 10 anos, a partir de quando a família passou por uma fase difícil, obrigando-o a trabalhar. O famoso “Clube do Samba”, que ele criou em sua própria casa, e que funcionou, depois, no Flamengo e na Barra da Tijuca, onde permanece até hoje. João Nogueira, em 1972, lançou, pela Odeon, seu primeiro LP, onde já se destacavam vários sucessos de sua autoria. Ao falecer, na madrugada do dia 6 de junho de 2000, vítima de um enfarte, quando se recuperava de um AVC, lá mesmo, no Rio que tanto amou, João Nogueira nos deixou uma herança musical repleta de grandes sucessos, todos, é claro, no ritmo do samba clássico, como Espelho, Um Ser de Luz, Súplica, O Poder da Criação e tantos outros que ficaram na história.

Antonio Moreira da Silva – que se tornou nacionalmente famoso pelo sobrenome completo – foi, ao contrário de João Nogueira, o sambista do samba do morro, todo cheio de malemolências, que conquista o brasileiro pela batida cadenciada e pelos versos que retratam a alma popular. Moreira da Silva, o velho Moringueira, nascido no dia primeiro de abril de 1902 – no alvorecer do século XX – era filho de um policial militar tocador de trombone e viveu toda a sua infância no Morro do Salgueiro. Com sua imagem de malandro e boêmio, Moreira da Silva, ao partir para a eternidade no mesmo dia 6 de junho, também do ano 2000, premiou a música popular brasileira com sambas-de-breque e chôros geniais de sua autoria e por ele interpretados, onde se destacam Casinha Amarela, Acertei no Milhar, Dormi no Molhado, Na Subida do Morro, 1.296 Mulheres, Olha o Padilha, O Rei do Gatilho, Patrulha da Cidade e muitos outros, todos presentes em mais de 20 LPs gravados, além de mais de 100 discos em rpm e quatro CDs. O eterno malandro foi uma forte marca musical em todo o século XX.

Ambos se foram numa mesma data e deixaram uma única e imensa saudade... dessas que a gente não cansa de chorar.