sábado, 19 de junho de 2010

O CONTO DO MÊS


A justiça

dos homens

N aquele dia, após uma semana de constantes julgamentos, o que Pôncio Pilatos mais desejava é que nada mais acontecesse que pudesse exigir a sua presença. Sentia-se cansado e seu corpo, não muito jovem, pedia paz e descanso, o que não era fácil de se conseguir naqueles dias turbulentos vividos em Jerusalém, quando o povo, sem acreditar em mais nada, temia apenas o poder de César e exigia provas da sua força, através da condenação pública dos seus inimigos.

- É verdadeiramente insuportável - dizia a um dos sumos-sacerdotes - essa incontrolável ânsia do povo, que não se cansa de exigir o sangue dos seus pretensos inimigos para minimizar a pobreza, a ignorância e a desesperança em que vive.

Ante o silêncio do seu interlocutor, Pilatos andava, vagarosamente, pela enorme e luxuosa sala onde costumava receber amigos e, ao passar por uma poltrona, adornada com frisos de ouro, deixou-se cair pesadamente, levando as mãos à cabeça, já bastante calva.

- Se a gente tivesse o poder de julgar sempre com justiça, de acordo com a nossa consciência, até que dava para suportar tantos problemas. Só que não é assim. Dependemos da vontade do povo. Aqui, o que menos importa é o voto da Corte. O Sinédrio emudece. Herodes se cala. E a vida de mais um homem acaba em minhas mãos. E eu, para tomar decisões, sou obri gado a ouvir a voz da turba e a guiar-me por ela, que quase sempre está a exigir a morte de mais alguem, seja culpado ou inocente, para seu capricho ou divertimento.

Timóteo, sendo sumo-sacerdote, mas amigo de Pilatos antes de tudo, interveio com ponde-ração:

- Não deves permitir que tais conceitos cheguem aos ouvidos de pessoas ligadas a Cesar e tu sabes muito bem porquê.

- Eles chegam somente a ti, em quem confio, e a quem tenho a ventura de chamar de amigo.

- E tu sabes que concordo plenamente com o que dizes e que são minhas as tuas palavras quando criticas a inutilidade

desses julgamentos.

Pilatos voltou a levantar-se e, com as mãos às costas, começou a caminhar em torno do amigo, sempre demonstrando a sua revolta:

- Roma está inquieta. É forte, é poderosa, é rainha absoluta, mas é, ao mesmo tempo, frágil, já que não esconde o seu temor quanto aos fantasmas que ameaçam o seu reinado. E as leis, antes feitas para coroar a justiça e premiar os inocentes, agora existem para acomodar os políticos, diminuir as tensões e atender aos nem sempre justos anseios que emanam do povo sofrido e revoltado.

- A teu ver – concorda Timóteo -, a justiça, agora, não passa de uma farsa. Os julgamentos continuam apenas para satisfazer a sociedade, mas não transmitem a verdade: os inocentes tornam-se culpados, os culpados são julgados inocentes e a impunidade, de certa forma, passa a ser justa, desde que as aparências a envolvam com seu manto, emprestando-lhe o brilho da verdade e a força de um ato legal.

- É isso ! - quase gritou, num ímpeto, Pilatos. É isso, sim ! É essa farsa que me atormenta ! Se sempre julguei de acordo com a minha consciência, como posso, agora, julgar de acordo com o jogo do poder e com os caprichos do povo ?

Com o dedo polegar sobre os lábios, como a pedir ao amigo que falasse mais baixo, Timóteo apenas ponderou:

- A nossa revolta é justa, só que não podemos deixa-la sair daqui dessas quatro paredes, para que não chegue ao conhecimento de César.

Abrindo a porta da sala, um centurião anunciou que Pilatos está sendo convocado para mais um julgamento.

Angustiado, seguindo em direção à sala das sentenças, apenas dizia consigo mesmo:

- Preciso voltar a ser justo.

Entrando na sala, viu-se diante de um homem magro, de altura mediana, moreno como a maioria dos judeus, com seus longos cabelos negros a cair-lhe sobre os ombros, barba e bigode à moda dos nazarenos, vestido com uma túnica branca, que o cobria do pescoço aos pés. Um tipo igual a tantos outros que já condenára à morte ou a outros castigos, atendendo à vontade do povo. Um, dentre muitos que já havia levado à cruz, sem nenhuma objeção. Só que, desta vez, ante sua revolta íntima, seria diferente. Haveria de reagir. Colocaria obstáculos. Daria uma chance à justiça.

- Que fez esse homem ?

- Esse homem - disse um dos presentes - foi encontrado por nós tumultuando os locais por onde tem passado, impedindo que sejam pagos tributos a César e apregoando ser um novo Messias... um novo rei !

Olhando nos olhos azuis do acusado, Pilatos perguntou:

- Tu és mesmo o rei do povo judeu ?

- Tu o dizes - respondeu.

Virando-se para os sumos-sacerdotes e para as pessoas que se acotovelavam no pátio, Pilatos declarou:

- Nada há neste homem que mereça condenação.

- Por toda a Judéia... da Galiléia até aqui - gritou uma voz no meio do povo – ele tem suble-vado a todos, pregando a desobediência a César !

- Ele é natural da Galiléia e, como galileu, o seu julgamento depende da autoridade de He rodes. É é para quem o envio. - concluiu, afastando-se.

Ao retornar ao convívio de Timóteo, novamente a sós, Pilatos reacende a sua revolta:

- Por acaso, lembrei-me que Herodes se encontra por aqui. Mas nada mais fiz, senão ganhar um pouco de tempo. Logo, Herodes o devolverá, que ele – tu bem sabes – não é de se meter em decisões que envolvam a vida ou a morte.

Colocou um pouco de vinho em duas taças e, entregando uma delas ao amigo, convidou-o:

- Que tal um brinde à justiça romana ?

Mal haviam sorvido a bebida, a porta, mais uma vez, é aberta, e Pilatos é convidado, de novo, a comparecer à sala das sentenças, onde lá estava, novamente, o prisioneiro, autorizado, por Herodes, a receber o julgamento.

Dirigindo-se aos sumos-sacerdotes, aos chefes e ao povo, deliberou:

- Vós me trouxestes este homem como se ele sublevasse o povo. Ao interroga-lo, nada achei que o fizesse merecer a condenação. Herodes tambem não, tanto que o mandou de volta. Por isso, vou infligir-lhe um castigo e solta-lo, como manda a lei.

A multidão, a uma só voz, explodiu em protestos.

- É um sublevador !

- Seu castigo é a morte !

- Deve morrer na cruz !

Num gesto extremo, Pilatos apontou para um homicida que ali também estava para ser julgado.

- Condenemos este homem à morte, mas libertemos o nazareno, que nada fez para merecer tamanha condenação !

Mas a multidão insistia, aos gritos, pela pena de morte, e o clamor que se ouvia crescia a cada instante:

- Crucificai-o ! Soltai o criminoso, mas levai-o à cruz !

Vencido, mais uma vez, pela vontade da turba, Pilatos ordenou que o assassino fosse solto e o inocente nazareno condenado à morte.

- Lavo minhas mãos.

De volta à sua sala de repouso, tendo, ao seu lado, a figura do amigo Timóteo, ficou, por alguns minutos, no mais profundo silêncio, até que, com a face marcada pela angústia, disse:

- Tu vistes e ouvistes tudo o que se deu. Pela primeira vez, tentei impor a lei... a justiça. Ao invés de simplesmente balançar a cabeça para confirmar a sentença, busquei iluminar o coração dos homens. Só que a escuridão que o envolve tornou-se impenetrável à luz. Preferiram soltar o bandido e condenar o inocente. Que mais posso fazer, senão lavar as mãos e desejar que, um dia, tudo isso se modifique ?

- Não acredito - acrescentou, sem muito entusiasmo, Timóteo - que algo se modifique no futuro. Por mais que se aperfeiçôe, a justiça jamais será perfeita. Sempre haverá, no mundo, injustiça e impunidade. Em qualquer tempo, inocentes estarão pagando por crimes que não cometeram, e crimi-nosos estarão à solta, impunes e intocáveis.

- Parece que a humanidade já escolheu o seu caminho e começa a construir um mundo, onde apenas a vontade dos mais fortes prevalece - concluiu Pilatos, quase num lamento.

- Roma é o exemplo. César é a imagem dessa força.

Sem dizer mais nada, os dois amigos apenas se levantaram e, ante os gritos da multidão lá fora, dirigiram-se à sacada, de onde puderam observar a turba, frenética, conduzindo o prisioneiro ao calvário.

Já era quase meio-dia, mas a noite parecia estar chegando, tantas eram as núvens escuras que escondiam o sol.

À noite, na hora da ceia, Pilatos e Timóteo nem mais se lembravam daqueles momentos angustiantes vividos no período matinal.

- Seria bom que tu pudesses esquecer tudo quanto falamos pela manhã. Temos que viver as nossas vidas, de acordo com a vontade de César. Não podemos nos rebelar - concluiu Pilatos.

- Que seja assim - concordou Timóteo.

Conversando pouco, ao se servirem na mesa farta, os dois se entreolhavam, de vez em quando, como se quisessem dizer algo, mas pareciam se conter e continuavam calados, embora não escondessem uma certa aflição pelo silêncio que estava, não mais na sala, mas dentro de si mesmos, incomodando-os íntimamente.

Finalmente, Pilatos, sem suportar mais aquela ausência de palavras, quis saber:

- Aquele homem... aquele que morreu na cruz... como se chamava mesmo ?

- Não lembro - respondeu Timóteo, forçando a memória.

- Nem eu - confessou.

E concluiu:

- Mas isso não tem a menor importância.

- Não tem mesmo - concordou o amigo.

No dia seguinte, Pilatos estava novamente na sala das sentenças, onde dezenas de presos aguarda-vam julgamento.

E ele voltou a ser o mesmo, julgando de acordo com o povo.

Como sempre fizera.

Sem mudanças.

Nenhum comentário:

Postar um comentário