sexta-feira, 29 de abril de 2011

CRÔNICA DA SAUDADE - 24/04/2011



ETERNO PIXINGUINHA

Ninguém conhece melhor a vida de Pixinguinha do que ele próprio. Preferi, portanto, em vez de buscar, com seus biógrafos, alguma coisa a mais para dar consistência à esta crônica, ouvir o próprio Pixinguinha, que assim falou sobre si mesmo, em depoimento dado ao Museu da Imagem e do Som:

- Meu nome completo é Alfredo da Rocha Vianna e foi com esse nome que fui registrado, após ter nascido, no dia 23 de abril de 1898, no bairro da Piedade, aqui, no Rio, cuja rua não posso precisar. Para meu irmão Léo foi na rua Alfredo Reis, mas para o João da Baiana e o Donga foi na rua Gomes Serpa. Meu pai se chamava Alfredo e, minha mãe, Raimunda da Rocha Vianna.

Foi graças ao pai, que era músico amador e possuia um grande arquivos de choros, que o pequeno Alfredinho passou a ouvir as primeiras músicas no gênero, que eram tocadas nas reuniões que se realizavam em sua própria casa, com a participação de grandes instrumentistas da época. Mas foi de Santa, sua prima, que veio o apelido de Pixinguinha, como passou a ser conhecido por todos os brasileiros.

Sua numerosa família contava com músicos excepcionais, como seus irmãos Otávio (que tocava violão e banjo, e tocava e declamava), Henrique e Léo (que tocavam cavaquinho e violão), e Edith, pianista, além de Ermengarda, cantora. Em meio a tantos músicos, logo aprendeu, com seu irmão Léo, a tocar cavaquinho. Já por volta de 1908, fez sua primeira composição: o choro Lata de Leite. A partir daí, o compositor e o músico passaram a ter vida própria. Em 1911, já integrava uma conhecida orquestra carnavalesca. No ano seguinte, já fazia sua primeira gravação, com o grupo Choro Carioca, da qual faziam parte seus irmãos Otávio e Léo. Em 1915, seu primeiro sucesso: o tango Dominante, que no ano seguinte seria gravado pela Odeon, em ritmo de polca. Ao criar o Grupo Pixinguinha, surgiram novos sucessos, em 1917, com os maxixes Morro da Favela e Morro do Pinto, além do tango Sofres Porque Queres e a valsa Rosa, dois clássicos de sua autoria. Em 1917, criou o conjunto Os Oito Batutas, apenas para tocar na sala de espera do Cinema Palais. O sucesso foi estrondoso, maior, ás vezes, do que os filmes que eram exibidos. Ernesto Nazareth e Rui Barbosa eram seus admiradores. O povo se aglomerava na calçada para ouvi-los. Em 1922, primeira viagem internacional – a Paris – para divulgar o maxixe. Na volta, compôs dezenas e dezenas de músicas, sempre com sucesso. Como se precisasse compor tanto quem, num momento de divina inspiração, em 1941, compôs, de uma só vez, os choros Lamentos e este insuperável Carinhoso.

Sendo, talvez, o compositor brasileiro que mais compôs em todos os tempos, garantindo inúmeros sucessos em nossa música popular, Pixinguinha atravessou os anos 60 em todo o esplendor do seu talento, até que veio a falecer, no dia 17 de fevereiro de 1973, aos 75 anos, em pleno domingo de carnaval, ao participar de um batizado na Igreja de Nossa Senhora da Paz.

Ah, se tu soubesses, Pixinguinha, como faz falta a tua música.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

CRÔNICA DA SAUDADE - abril 2011




SAUDADE DA MORENA

A melhor lembrança que guardo de Clara Nunes, a morena de Angola que enlouqueceu o Brasil, foi a sua entrada estonteante em minha sala, em 1968, quando dirigia a Rádio Sociedade da Bahia, em Salvador, bela e envolvente nos seus 26 anos, trazendo, em suas mãos, o segundo LP que acabára de gravar na Odeon, cujo título – Você passa, eu acho graça – fora retirado da música de Ataulfo Alves que tinha se transformado em seu primeiro grande sucesso, tendo servido, também, para fixar a sua voz ao nosso samba.

Logo após ouvir a música-tema do LP e de parabenizar a jovem cantora por sua interpretação, fiz com que a música fosse tocada nos principais horários da emissora e fiz um convite à sua intérprete para que participasse de um programa de auditório que logo iria ao ar na TV Itapuan. Clara não só aceitou o convite, como subiu ao palco e, diante das câmeras, deu um show de canto e de rebolado, conquistando de vez a admiração dos baianos.

Alegre e descontraída, parecendo sempre de bem com a vida, Clara Nunes passou pela vida como um raio de luz, iluminando os caminhos e conquistando corações com a força dos seus encantos e das suas musicas.

Tendo sido a caçula dos sete filhos do casal Manuel Araújo e Amélia Nunes, Clara nasceu, no dia 12 de agosto de 1942, no distrito de Paraopeba (hoje Caetanópolis), no município de Cedro, no interior de Minas Gerais, local onde viveu até os 16 anos de idade. Suas primeiras ligações com a música, foi através do pai, que era violeiro e tocava nas festas de Folia de Reis, e com o coral da Matriz de Cruzada Eucarística, onde cantava ladainhas em latim. Com a morte dos pais, foi morar com dois irmãos em Belo Horizonte, participando do Coral Renascença, da igreja do bairro onde morava. Em 1960, foi a vencedora do concurso A Voz de Ouro ABC, na fase mineira, cantando a música Serenata do Adeus, de Vinicius de Morais. Logo depois, com a música Só Adeus, de Jair Amorim e Evaldo Gouveia, obteve o 3º lugar na finalíssima realizada em São Paulo. Ao lado de Milton Nascimento – Bituca -, que atuava como baixista, ela passou aparecer como crooner de boates e, logo após, na televisão, fazendo sucesso no programa de Hebe Camargo na TV Itacolomi, até que ganhou um show todo seu, onde apresentava artistas de renome nacional, como Ângela Maria, Altemar Dutra e muitos outros. Em 1965, foi para o Rio de Janeiro, onde passou a atuar nos melhores programas de televisão. A partir de 1969, com o disco Ave Maria do Retirante, tornou-se nacionalmente conhecida. No ano seguinte, realizou, com Ivon Curi, um grande show em Luanda, na África. Com Toquinho e Vinicius, percorreu o Brasil com o show O Poeta, a Moça e o Violão. E vieram os grandes sucessos: Contos de Areia, Menino de Deus, O Mar Serenou, Juízo Final, Macunaíma, herói da nossa gente, A Flor da Pele, Coração Leviano, Feira de Mangaio (do nosso Sivuca e Glorinha) e tantas outros.

Clara morreu no Rio, dia 2 de um mês de abril igual a este,no ano de 1983, após submeter-se à uma simples cirurgia de varises. Faz 28 anos que ela se foi, deixando, em seu lugar, esta imensa saudade.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

O CONTO DO MÊS - abril 2011











Uma história
nada moderna

De tanto encher o saco de políticos e, principalmente, do Governador do Estado, seu amigo de infância, acabou por ser nomeado para um cargo que ambicionava, não tanto pelo salário - que não era essas coisas -, mas pelo prestígio que passaria a desfrutar junto aos intelectuais da terra, aos artistas e escritores, e ele - assim pensava -, como jornalista de tantos anos, tendo feito, com seus artigos e reportagens, a imagem de muita gente importante, estava por merecer, sem dúvida, tal recompensa.

Saudado pelos governantes do estado e do município como um homem de letras, “batalhador incansável em defesa dos movimentos culturais” , “defensor e divulgador das artes plásticas”, “um homem de vanguarda, sempre à frente do seu tempo”, o Adelino ali estava, longe do batente da redação do jornal onde trabalhava há quase trinta anos, sendo empossado, com direito e discursos e coquetel, como diretor do Museu de Arte Moderna da sua cidade.

- José Adelino de Souza, diretor do museu... - dizia, a todo instante, consigo mesmo, sem querer acreditar que estava vivendo tudo aquilo, sendo cumprimentado por dezenas de autoridades, colegas de profissão e pessoas que não via há bastante tempo.

- Como vai, Adelino ? - ao ouvir aquela voz, virou-se rapidamente, duvidando que fosse quem ele pensou que era.

- Mestre Giba ! Você veio mesmo !

Gilberto era como um irmão para Adelino. Mais que isso: um ídolo. Tornára-se escritor de renome e fora morar no Rio. De vez em quando, falavam-se por telefone, trocavam correspondência, mas já fazia quase dez anos que não se viam. Abraçaram-se demoradamente, tempo suficiente para Adelino cochichar ao ouvido do amigo:

- Quando esse povo todo sair daqui, nós vamos botar nosso papo em dia. Se quiser, espere-me ali, na minha sala. Fique à vontade, mas não saia sem falar comigo.

Quando o uísque, a cerveja e os tira-gostos começaram a escassear, os convidados, aos poucos, foram caindo fora, até que, finalmente, já tarde da noite, só restavam os zeladores, varrendo e limpando tudo, tentando botar ordem na casa.

- Enfim, sós ! - exclamou, exultante e sorridente, o Adelino, dirigindo-se a Gilberto, que se instalára numa das poltronas do gabinete do diretor.

- Quando soube, não acreditei - foi dizendo o amigo, levantando-se. Vim ver para crer.

- Espere... - atalhou Adelino. Esse certamente não é o melhor emprego do mundo. Por que não acreditou ?

- Porque nunca esqueci o que pensavámos a respeito da arte moderna e de outros movimentos de vanguarda...

- Ah, sim, o que pensávamos...

- A anti-arte, a anti-literatura, a anti-poesia.

- Claro que me lembro de tudo.

-Tanto levei a sério o que discutíamos e apregoávamos - asseverou o amigo - que as nossas conclusões a respeito são o tema do meu próximo livro, que logo será lançado.

- O modernismo... a vanguarda... - concluiu Adelino, baixinho.

Gilberto fez uma pausa, antes de perguntar:

- Mudou a arte moderna ou mudou você ?

Com um sorriso amigável, Adelino botou a mão no ombro do amigo e o foi conduzindo para fora da sala.

- Vamos conhecer o museu.

Lentamente e silenciosos, foram caminhando, em meio a quadros de Anita Malfatti, Portinari, Volpi e Iberê - este, justo na fase abstracionista, com suas pinturas gestuais, e pararam diante de um dos orangolês de Oiticica, feitos para explicar o neoconcretismo.

- Isso é arte ? - quis saber Gilberto.

- Sinceramente ? - perguntou Adelino.

- Sinceramente - pressionou o amigo.

- Não. Pode ser tudo, menos arte - respondeu.

- Pelo visto, você não mudou inteiramente. Ainda tem salvação.

- É claro que não mudei. O mundo, a vida, talvez. Não eu.

- Lembra-se da nossa exposição maldita, que obrigou os intelectuais da época a aceitarem o nosso jogo ?

- A exposição... - Adelino já começou a falar sorrindo e, perdendo o controle, foi aumentando a risada, até que, em dueto, junto com Guilherme, gargalhava estripitosamente, como se não mais conseguisse parar.

- Nós eramos malucos ! - exclamou, finalmente, Gilberto, já cansado de tanto rir.

- Dois malucos maravilhosos, sem dúvida - concordou Adelino, ainda rindo.

- Deu um trabalho danado, mas demos a eles a resposta que mereciam... lembra-se ? - quis saber Gilberto, enquanto o amigo balançava a cabeça afirmativamente. A trabalheira maior foi conseguir as reproduções. Mas não tinha outro jeito. Já se estendia por mais de um mês aquela polêmica. No nosso jornal - já que o editor, mesmo sem se meter no assunto, comungava com nossas idéias -, num dia, lá estava eu, em artigo assinado, metendo o sarrafo no modernismo e, no outro dia, no mesmo local, lá vinha você, batendo duro na falsa arte !

- É, mais do outro lado - no mais forte jornal concorrente - todos os articuladores se transformaram em ferrenhos defensores da arte moderna e cairam de pau em cima da gente ! - lembrou Adelino.

- Nunca esqueci um dos seus artigos mais extraordinários... aquele sobre a revolta dos medíocres. Decorei alguns trechos inesquecíveis, como estes: Que fizeram Matisse e Derain com a pintura ? E Braque e Picasso, com o cubismo, o que fizeram com a arte ? E Miró, Magritte, Dali, Pollock, Epstein, Chagall, Bacon e tantos outros de um mesmo time, o que conseguiram fazer com as artes plásticas ? Eles escolheram o século XX para comandar a revolução dos medíocres. Descobriram que os verdadeiros gênios rareavam cada vez mais. Na pintura, estava cada vez mais difícil aparecer um Michelangelo, um Rafael, um Da Vinci, um Rubens, um Velasquez, um Rembrandt. Na literatura, escasseavam os escritores e os poetas de verdade, que escreviam e versejavam como ninguém, a exemplo de Dickens, Machado, Eça, Bocage, Bilac, Augusto, Castro Alves e tantos outros. Que história é essa - pensaram - de captar a natureza, as coisas e as pessoas, nos mínimos detalhes, com as cores mais próximas da realidade, numa pintura que todos entendiam e onde podiam sentir a grandeza do gênio? Por que as esculturas tinham que ter as formas reais, do jeitinho que nossos olhos vêem ? E a poesia ? Que conversa é essa de rima, de decassílabo, de alexandrino, de métrica ? Vamos virar o jogo ! - bradaram. A partir de agora - decidiram -, qualquer pessoa que saiba segurar um pincel e espalhar tintas numa tela, sem nem pensar no que está fazendo, passa a ser pintor; quem conseguir usar um cutelo ou qualquer outro instrumento, e esculpir(?) algo, mesmo que ninguém entenda ( e é assim que deve ser), é escultor; quem fizer prosa, utilizando metáforas que nem o próprio autor saiba como interpretá-las, é poeta. E deu no que deu. A revolução dos medíocres, mesmo sem o apoio do povo, mas com o aval dos intelectuais e dos meios de comunicação, saiu-se vitoriosa. A mediocridade venceu.

- Que bom que ainda se lembra do texto ! - vibrou, impressionado com a prova de boa memória do Gilberto, o sorridente Adelino.

- E fizemos a exposição, dando um chute no saco do modernismo. Gastamos todas as nossas economias, mas conseguimos as reproduções das obras mais consagradas. Lá estavam, muito bem representados por alguns dos seus mais aplaudidos trabalhos, Picasso, Marinetti, Mondrain, Braque, Gabo, Miró, Dali, Pollock, Chagall, num total de cinquenta quadros. Enviamos convites a críticos, intelectuais e jornalistas (especialmente para aqueles que sempre defenderam a arte moderna), dando a impressão de que tínhamos deposto as armas. Quando todos se encontravam na galeria, observando as reproduções que nada diziam sobre seus autores e muito menos sobre as pinturas, pedimos que as pessoas presentes, juntas, fizessem a identificação, anotando os nomes dos artistas, os títulos dos quadros e o que significavam. Foi um reboliço. Muitos tentaram fugir, mas a imprensa estava à porta, pronta para entrevistar os fujões. Tiveram que ficar. Durante uma hora (o prazo anunciado, ao microfone), eles bem que tentaram preencher as papeletas em branco, abaixo dos quadros. Diante do “Homem com Cachimbo”, de Picasso, ninguém conseguiu ver o homem nem muito menos o cachimbo. Na papeleta da “Floresta Encantada”, de Pollock, alguém escreveu “Rabiscos” na linha reservada ao título. Finalmente, nada foi identificado e todos sairam dali, além de irritados, visivelmente humilhados. No outro dia, fizemos um carnaval com uma reportagem completa sobre o evento !

- Um golpe de mestre, sem dúvida - garantiu Adelino, com certo orgulho. Mostramos que eles escreviam sobre o que, na verdade, não entendiam. Quer dizer: iludiam a opinião pública. Tanto assim, que alguns deles tiveram que mudar seus conceitos e a maioria optou por nos deixar em paz.

Gilberto aproximou-se do amigo, colocou a mão sobre o seu ombro e foi assim, abraçados, que os dois sairam do museu, sem dizer mais nenhuma palavra, e entraram no carro.

Diante do hotel onde Gilberto estava hospedado, Adelino parou o automóvel e foi dizendo:

- Prepare o uísque. Voltarei já.

- Aonde vai ?

- À casa do Governador.

- Fazer o que ?

- Pedir demissão.

Gilberto não disse nada. Apenas sorriu.

- É mais uma cacetada que vamos dar no modernismo.

E dando partida no carro:

- Voltarei para comemorar.

Voltou e beberam até alta madrugada, incomodando os hóspedes do hotel com intensas e cada vez mais altas gargalhadas, que coroavam as lembranças dos tempos bons de outrora.