Uma história
nada moderna
De tanto encher o saco de políticos e, principalmente, do Governador do Estado, seu amigo de infância, acabou por ser nomeado para um cargo que ambicionava, não tanto pelo salário - que não era essas coisas -, mas pelo prestígio que passaria a desfrutar junto aos intelectuais da terra, aos artistas e escritores, e ele - assim pensava -, como jornalista de tantos anos, tendo feito, com seus artigos e reportagens, a imagem de muita gente importante, estava por merecer, sem dúvida, tal recompensa.
Saudado pelos governantes do estado e do município como um homem de letras, “batalhador incansável em defesa dos movimentos culturais” , “defensor e divulgador das artes plásticas”, “um homem de vanguarda, sempre à frente do seu tempo”, o Adelino ali estava, longe do batente da redação do jornal onde trabalhava há quase trinta anos, sendo empossado, com direito e discursos e coquetel, como diretor do Museu de Arte Moderna da sua cidade.
- José Adelino de Souza, diretor do museu... - dizia, a todo instante, consigo mesmo, sem querer acreditar que estava vivendo tudo aquilo, sendo cumprimentado por dezenas de autoridades, colegas de profissão e pessoas que não via há bastante tempo.
- Como vai, Adelino ? - ao ouvir aquela voz, virou-se rapidamente, duvidando que fosse quem ele pensou que era.
- Mestre Giba ! Você veio mesmo !
Gilberto era como um irmão para Adelino. Mais que isso: um ídolo. Tornára-se escritor de renome e fora morar no Rio. De vez em quando, falavam-se por telefone, trocavam correspondência, mas já fazia quase dez anos que não se viam. Abraçaram-se demoradamente, tempo suficiente para Adelino cochichar ao ouvido do amigo:
- Quando esse povo todo sair daqui, nós vamos botar nosso papo em dia. Se quiser, espere-me ali, na minha sala. Fique à vontade, mas não saia sem falar comigo.
Quando o uísque, a cerveja e os tira-gostos começaram a escassear, os convidados, aos poucos, foram caindo fora, até que, finalmente, já tarde da noite, só restavam os zeladores, varrendo e limpando tudo, tentando botar ordem na casa.
- Enfim, sós ! - exclamou, exultante e sorridente, o Adelino, dirigindo-se a Gilberto, que se instalára numa das poltronas do gabinete do diretor.
- Quando soube, não acreditei - foi dizendo o amigo, levantando-se. Vim ver para crer.
- Espere... - atalhou Adelino. Esse certamente não é o melhor emprego do mundo. Por que não acreditou ?
- Porque nunca esqueci o que pensavámos a respeito da arte moderna e de outros movimentos de vanguarda...
- Ah, sim, o que pensávamos...
- A anti-arte, a anti-literatura, a anti-poesia.
- Claro que me lembro de tudo.
-Tanto levei a sério o que discutíamos e apregoávamos - asseverou o amigo - que as nossas conclusões a respeito são o tema do meu próximo livro, que logo será lançado.
- O modernismo... a vanguarda... - concluiu Adelino, baixinho.
Gilberto fez uma pausa, antes de perguntar:
- Mudou a arte moderna ou mudou você ?
Com um sorriso amigável, Adelino botou a mão no ombro do amigo e o foi conduzindo para fora da sala.
- Vamos conhecer o museu.
Lentamente e silenciosos, foram caminhando, em meio a quadros de Anita Malfatti, Portinari, Volpi e Iberê - este, justo na fase abstracionista, com suas pinturas gestuais, e pararam diante de um dos orangolês de Oiticica, feitos para explicar o neoconcretismo.
- Isso é arte ? - quis saber Gilberto.
- Sinceramente ? - perguntou Adelino.
- Sinceramente - pressionou o amigo.
- Não. Pode ser tudo, menos arte - respondeu.
- Pelo visto, você não mudou inteiramente. Ainda tem salvação.
- É claro que não mudei. O mundo, a vida, talvez. Não eu.
- Lembra-se da nossa exposição maldita, que obrigou os intelectuais da época a aceitarem o nosso jogo ?
- A exposição... - Adelino já começou a falar sorrindo e, perdendo o controle, foi aumentando a risada, até que, em dueto, junto com Guilherme, gargalhava estripitosamente, como se não mais conseguisse parar.
- Nós eramos malucos ! - exclamou, finalmente, Gilberto, já cansado de tanto rir.
- Dois malucos maravilhosos, sem dúvida - concordou Adelino, ainda rindo.
- Deu um trabalho danado, mas demos a eles a resposta que mereciam... lembra-se ? - quis saber Gilberto, enquanto o amigo balançava a cabeça afirmativamente. A trabalheira maior foi conseguir as reproduções. Mas não tinha outro jeito. Já se estendia por mais de um mês aquela polêmica. No nosso jornal - já que o editor, mesmo sem se meter no assunto, comungava com nossas idéias -, num dia, lá estava eu, em artigo assinado, metendo o sarrafo no modernismo e, no outro dia, no mesmo local, lá vinha você, batendo duro na falsa arte !
- É, mais do outro lado - no mais forte jornal concorrente - todos os articuladores se transformaram em ferrenhos defensores da arte moderna e cairam de pau em cima da gente ! - lembrou Adelino.
- Nunca esqueci um dos seus artigos mais extraordinários... aquele sobre a revolta dos medíocres. Decorei alguns trechos inesquecíveis, como estes: Que fizeram Matisse e Derain com a pintura ? E Braque e Picasso, com o cubismo, o que fizeram com a arte ? E Miró, Magritte, Dali, Pollock, Epstein, Chagall, Bacon e tantos outros de um mesmo time, o que conseguiram fazer com as artes plásticas ? Eles escolheram o século XX para comandar a revolução dos medíocres. Descobriram que os verdadeiros gênios rareavam cada vez mais. Na pintura, estava cada vez mais difícil aparecer um Michelangelo, um Rafael, um Da Vinci, um Rubens, um Velasquez, um Rembrandt. Na literatura, escasseavam os escritores e os poetas de verdade, que escreviam e versejavam como ninguém, a exemplo de Dickens, Machado, Eça, Bocage, Bilac, Augusto, Castro Alves e tantos outros. Que história é essa - pensaram - de captar a natureza, as coisas e as pessoas, nos mínimos detalhes, com as cores mais próximas da realidade, numa pintura que todos entendiam e onde podiam sentir a grandeza do gênio? Por que as esculturas tinham que ter as formas reais, do jeitinho que nossos olhos vêem ? E a poesia ? Que conversa é essa de rima, de decassílabo, de alexandrino, de métrica ? Vamos virar o jogo ! - bradaram. A partir de agora - decidiram -, qualquer pessoa que saiba segurar um pincel e espalhar tintas numa tela, sem nem pensar no que está fazendo, passa a ser pintor; quem conseguir usar um cutelo ou qualquer outro instrumento, e esculpir(?) algo, mesmo que ninguém entenda ( e é assim que deve ser), é escultor; quem fizer prosa, utilizando metáforas que nem o próprio autor saiba como interpretá-las, é poeta. E deu no que deu. A revolução dos medíocres, mesmo sem o apoio do povo, mas com o aval dos intelectuais e dos meios de comunicação, saiu-se vitoriosa. A mediocridade venceu.
- Que bom que ainda se lembra do texto ! - vibrou, impressionado com a prova de boa memória do Gilberto, o sorridente Adelino.
- E fizemos a exposição, dando um chute no saco do modernismo. Gastamos todas as nossas economias, mas conseguimos as reproduções das obras mais consagradas. Lá estavam, muito bem representados por alguns dos seus mais aplaudidos trabalhos, Picasso, Marinetti, Mondrain, Braque, Gabo, Miró, Dali, Pollock, Chagall, num total de cinquenta quadros. Enviamos convites a críticos, intelectuais e jornalistas (especialmente para aqueles que sempre defenderam a arte moderna), dando a impressão de que tínhamos deposto as armas. Quando todos se encontravam na galeria, observando as reproduções que nada diziam sobre seus autores e muito menos sobre as pinturas, pedimos que as pessoas presentes, juntas, fizessem a identificação, anotando os nomes dos artistas, os títulos dos quadros e o que significavam. Foi um reboliço. Muitos tentaram fugir, mas a imprensa estava à porta, pronta para entrevistar os fujões. Tiveram que ficar. Durante uma hora (o prazo anunciado, ao microfone), eles bem que tentaram preencher as papeletas em branco, abaixo dos quadros. Diante do “Homem com Cachimbo”, de Picasso, ninguém conseguiu ver o homem nem muito menos o cachimbo. Na papeleta da “Floresta Encantada”, de Pollock, alguém escreveu “Rabiscos” na linha reservada ao título. Finalmente, nada foi identificado e todos sairam dali, além de irritados, visivelmente humilhados. No outro dia, fizemos um carnaval com uma reportagem completa sobre o evento !
- Um golpe de mestre, sem dúvida - garantiu Adelino, com certo orgulho. Mostramos que eles escreviam sobre o que, na verdade, não entendiam. Quer dizer: iludiam a opinião pública. Tanto assim, que alguns deles tiveram que mudar seus conceitos e a maioria optou por nos deixar em paz.
Gilberto aproximou-se do amigo, colocou a mão sobre o seu ombro e foi assim, abraçados, que os dois sairam do museu, sem dizer mais nenhuma palavra, e entraram no carro.
Diante do hotel onde Gilberto estava hospedado, Adelino parou o automóvel e foi dizendo:
- Prepare o uísque. Voltarei já.
- Aonde vai ?
- À casa do Governador.
- Fazer o que ?
- Pedir demissão.
Gilberto não disse nada. Apenas sorriu.
- É mais uma cacetada que vamos dar no modernismo.
E dando partida no carro:
- Voltarei para comemorar.
Voltou e beberam até alta madrugada, incomodando os hóspedes do hotel com intensas e cada vez mais altas gargalhadas, que coroavam as lembranças dos tempos bons de outrora.