A mãe entrou de repente no quarto do Renato, que ainda dormia a sono solto, deu-lhe uma palmada na bunda e foi dizendo:
- Tá na hora de acordar, seu preguiçoso ! Levante logo da cama que o café está na mesa !
Esfregando os olhos, sem entender direito o motivo que levára dona Sílvia a acorda-lo tão cedo, foi logo protestando:
- Eu tô de férias, mãe ! De férias, tá lembrada ?!
- Estou, sim, mas também não esqueci que tua prima, a Tininha, está chegando dentro de uma hora na rodoviária. E é você quem vai busca-la ! - acrescentou a mãe, puxando-lhe o cobertor.
- Por que eu ? Por que não o pai ? - quis saber.
- Seu pai foi pro escritório, a empregada não veio e só restou você para a tarefa !
- Essa Tininha só pode ser uma chata de galocha ! Mal chegou e já tá enchendo meu saco !
- Não fale assim da sua prima. Pense na situação da pobrezinha, agora que perdeu o pai. Sua tia Giovana, sem o marido, ficou reduzida a um salário miserável de professora para sustentar quatro filhos. Fui eu que convidei a Martina a vir morar conosco - relembrou.
E concluiu:
- Levante-se da cama, pegue o carro e vá pra rodoviária. O ônibus deve estar chegando às 10 horas.
Mesmo a contragosto, Renato se levantou, tomou um banho rápido, sorveu um gole de café, entrou no carro e se mandou.
Retrato da prima na mão, já que não a conhecia - a última vez que a vira fazia quase doze anos e eles nada mais eram que dois pirralhos -, o Renato ali estava, na rodoviária, à espera da Tininha.
E pensava:
- Deve ser uma roceira das brabas. A julgar pela cidade de onde vem... Quase não aparece no mapa do Ceará. E ainda vive num sítio.
- Oi ! - disse uma voz feminina, às suas costas.
Virou-se rapidamente e ali estava a prima, com uma foto numa das mãos.
- Pela foto, você deve ser o Renato.
- E você a Tininha.
- Exato.
- Vim espera-la.
- Sei.
- Bem... vamos indo.
E entraram no carro
Predispostos a não se tolerarem, Renato e Tininha não se falaram mais na volta à casa. A menina da roça não tinha como gostar daquele primo rico, que vivia na cidade grande, que jamais lhe escrevera uma carta sequer e com quem nunca tivera a menor intimidade. O menino da capital, na imponência dos seus 16 anos, filho único, mimado pelos pais, que sempre vivêra no Rio, por que iria preocupar-se com aquela prima, que nunca vira mais gorda, pois sempre estivera enterrada num sitiozinho perdido no sertão do Ceará ? Em silêncio, os dois arriscavam olhares furtivos, tentando encontrar, cada um, no outro, algum traço de simpatia. Como pareciam nada encontrar, seguiam sem dizer palavra.
Ao descer do automóvel, na garagem do edifício, ajudou a moça a carregar as malas até o apartamento, onde Dona Sílvia, sorridente, recepcionou a sobrinha:
- Tininha querida, sinta-se como se estivesse em casa. Você, agora, passa a ser a filha que eu não tive. Vou leva-la ao seu quarto para que tome um banho. Está empoeirada e cansada. Vamos.
- Obrigada, tia - disse, encabulada, a Tininha, sufocada pela timidez que se agigantava ante o inusitado de tudo quanto via.
Da janela do seu quarto, no vigéssimo andar, já tendo tomado banho e estando apenas de calcinha, deliciava-se em olhar a paisagem do Rio, como se estivesse sonhando, quando ouviu a voz da tia:
- Tininha ! Estamos à sua espera. O almoço está servido.
Vestiu seu melhor vestido e desceu uma pequena escada em direção à sala, onde, em volta de uma mesa farta, lá estavam a tia Sílvia e Renato, e, naturalmente, seu marido, o Oscar, que se levantou para cumprimenta-la:
- Você, agora, é nossa filha, meu amor. Venha sentar-se, aqui, ao lado do Renato.
Procurando não cometer gafes à mesa, Tininha serviu-se, sem deixar de observar, com surpresa, todo o luxo daquela cobertura ampla, onde passaria a viver dali pra frente.
Era domingo. Sendo folga da empregada, o casal estava só e teria que sair. Havia um encontro. Oscar bem que tentou explicar:
- Nós já haviámos marcado um encontro na casa do Tel, o gerente do banco...
- São coisas que acontecem - tentou ajudar, com jeito, a dona Sílvia. O encontro foi marcado
muito antes de recebermos a carta da Giovana. Não podemos faltar. É no banco do Pimentel que Oscar realiza seus negócios. Você entende, não é, Tininha ? Quer ir conosco ?
Tininha entendeu que a tia perguntára só por perguntar e respondeu:
- Não, tia, obrigada. Prefiro ficar em casa. Estou muito cansada.
- E você, Renato, não vai sair ? - quis saber o pai.
- Não, pai. Hoje tem jogo na TV. Vasco e Flamengo. Não posso perder.
- Na hora do jantar, estaremos em casa - despediu-se o Oscar, entrando no elevador, de mãos dadas com a esposa.
De repente, os meninos estavam sós. Na ampla sala, Tininha tratou de ficar o mais distante possível do primo e foi sentar-se na ponta do sofá. Renato, demonstrando não dar a mínima pra ela, sentou-se numa poltrona diante do telão e, de controle remoto na mão, ligou a TV.
- Vai começar mais um grande clássico do campeonato carioca: Vasco e Flamengo.
Ajeitando-se na poltrona, não tinha como Renato não ver as pernas da Tininha, que
uma generosa mini-saia as deixava de fora. E só agora notava: a menina podia ser uma roceira, mas tinha uma coxas de causar inveja à Carla Perez. E reparando bem: depois do banho, ficára mais bonita e - por que não dizer ? - até apetitosa.
- As duas equipes já estão no gramado. Vai começar o grande clássico. A saida pertence ao Flamengo. Bola rolando. Taí o que você queria !
- Gosta de futebol ?
- Gosto. Sempre assisto aos jogos do Flamengo.
- Do Flamengo ?!
- Por que essa cara ?
- Torço pelo Vasco.
- Lamento.
- Bola com Wellinton, que avança pela esquerda, combina com Willians mais na frente, com toque rápido serve a Thiago Neves, que deixa Anderson pra trás, toca para Ronaldinho Gaucho, que invade a área, chuta no canto e... defendeu Fernando Prass !
- Porra ! Como é que esse goleiro defende um chute como esse ! Assim é foda !
- An-ran...
- Desculpe pelo palavrão.
- Fique à vontade.
- Olha só o Vasco...
- Fagner passa para Dedé, que serve a Mário Careca. Ganha na corrida com Egídio. Deixa com Juninho Pernambucano, que dribla Andersonl e estira para Diego Souza. Sai da marcação de Fagner e cruza para a área na direção de Eder Luis, que deixa Wellinton perdido, procura espaço e chuta. Segura firme Felipe !
- Isso é que é goleiro !
- Pura sorte ! O Eder tinha tudo pra fazer o gol !
- Tininha... venha mais pra perto. Daqui, você vê melhor. Venha.
- Olha o Flamengo !
- Venha pra cá... assim.
- Já tô vendo bem. Vamos lá, David !
- Agora é a vez de David, que disputa a bola com Rômulo, deixa com Maldonado, que chega a linha de fundo sem a marcação de Dedé e cruza para a área. Cabeçada de Eder Luis e mais uma defesa de Fernando !
- Você é bonita, sabe ?
- Hein ?
- Eu disse que você é bonita. Não havia reparado.
- Você também.
- Também o que ?
- É bonito.
- Fica pertinho de mim.
- Assim ?
- Mais perto.
- Está amadurecendo o gol do Vasco, que está mais presente no ataque. Corner contra
o Flamengo !
- Suas mãos... elas são lisas como se fossem de veludo.
- Por viver num sítio, julgou que elas fossem calejadas?
- É... enganei-me.
- Gosto do seu jeitão.
- Você é perfeita, sabe ? Seu sorriso... suas pernas...
- É falta ! É falta perigosa contra o Flamengo !
- É melhor prestar atenção ao jogo, Renato.
- Prefiro olhar pra você.
- Seus pais podem voltar.
- Tá esquecida ? Só voltam às 6 da noite...
- Pode entrar alguém.
- A porta só abre se o visitante se comunicar pelo interfone...
- Minha Nossa Senhora! Mais uma milagrosa defesa de Cremmer !
- Você não tira os olhos das minhas coxas... Quer vê-las melhor ? É só abrir bem as pernas... Que tal ?
- Agora é o Flamengo que ataca perigosamente com Thiago Neves, que passa para Deivid, que lança para Ronaldinho Gaucho e... falta ! Falta na entrada da área !
- Me dá um beijo...
- Oh, Renato...
- Vamos, tire essa saia...
- Eu sou virgem.
- Empatamos. Eu tambem sou.
- É Ronaldinho Gaucho quem vai bater. Fernando orienta a barreira. Prepara-se o Ronaldinho
para efetuar a cobrança !
- Ah, meu amor, com mais calma...
- Vamos ficar nús...
- Assim... vamos tirar todas as roupas...
- Pode pintar o gol do Flamengo.
- Pronto... deite-se aí...
- Devagar...
- Prepara-se Ronaldinho. Pode sair uma jogada ensaiada. O baixinho corre para a bola,
chuta direto e... Fernando não vai chegar !
- Ah, Renato !
- Tininha !
- Ahhh !
- É goooolllll ! É gol do Flamengo ! Ronaldinho Gaucho abre o placard no Maracanã !
Quando os pais de Renato voltaram, os meninos estavam quietinhos, sentados no sofá, como se nada tivesse acontecido. Só que estavam alegres, sorrindo a todo instante, como bons amigos.
- Ainda bem que vocês se entenderam e fizeram amizade - disse dona Sílvia, notando a diferença.
- E é assim que devem continuar: como dois irmãos - reforçou o pai.
Só estranhou quando o filho não soube dizer o resultado da partida e saiu da sala com
um sorriso abestalhado nos lábios, como se estivesse sonhando.
No seu quarto, deitado na cama, feliz da vida, dizia consigo mesmo:
- Eu fiz um gol. Um gol de placa.
Sem nem se tocar que seu time do coração havia perdido o jogo por 2 a 1, foi dormir como um anjo, já pensando quando entraria em campo para uma próxima partida.
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