O DIABO QUE
VIROU SANTO
Sua vida estava por um fio naquela pequena cidade.
De tanto se meter em confusão, o Zé Maria não tinha outra alternativa, senão se mandar dali sem pestanejar, deixando de vez o vilarêjo onde nascêra, onde se tornara um menino vadio e traquinas, um adolescente terrível e, finalmente, um adulto verdadeiramente insuportável, infernizan-do a vida de todos os habitantes de Pau Ferro.
Enquanto a localidade nada mais era do que uma concentração de pequenos sítios, algumas casas em volta da bodega de seu Adelino e da igrejinha de São José, bem que dava pra suportar as brincadeiras, nem sempre inocentes, do Zé Maria - o Zé do Biu -, como todo mundo o conhecia, devido ao apelido do pai, que era dono de um sitiozinho, onde plantava mandioca e criava galinhas. Menino ainda, já demonstrava o que queria ser na vida: um malandro de marca maior. Nunca batêra um prego numa barra de sabão. O Biu e a Das Dores, sua mulher, tudo fizeram para bota-lo no bom caminho. Chegaram até a matricula-lo no Grupo Escolar de uma cidade próxima, distan-te uns oito quilômetros de Pau Ferro. Mas ele nunca assistiu à uma aula sequer. Dizia que ia, subia na garupa do jumento, mas se escondia pelo caminho, preferindo roubar manga, jaca, laranja e até galinha dos sítios da vizinhança. Ao chegar em casa, contava um monte de mentira pros pais que, no começo, até que acreditavam no semvergonha, mas na medida em que foram descobrindo as safadezas do filho, trocaram os gestos de carinho por surras bem aplicadas. Só que não tinha mais jeito: todo santo dia chegava alguém reclamando do Zé Maria. Na exata proporção em que crescia e se tornava adulto, os problemas do Zé iam crescendo também e se tornavam mais sérios. Eram pais de ex-donzelas, que sempre prometiam matar o desgraçado que havia infelicitado as suas filhas; eram maridos traidos, que estavam à cata do safado para capá-lo; eram comerciantes que haviam confiado na lábia do terrível mentiroso, vendendo-lhe isso e aquilo, e jamais recebendo, por conta, um tostão que fosse; eram, enfim, dezenas de pessoas que, por esse ou por aquele motivo, precisavam acertar contas com o malandro.
Quando Pau Ferro virou cidade, emancipando-se políticamente, a população achou que chegára a hora de dar um basta naquilo tudo.
O Zé do Biu ia ver o que era bom pra tosse.
E foi assim que as principais lideranças do novo município (dentre as quais, muitos maridos chifrudos) se reuniram na sala do prefeito (cuja mulher tinha sido uma das vítimas do Zé), com um único objetivo: procurar prender e, se possível, expulsar da cidade tão perigoso elemento.
- Se eu botar as mãos no safado, eu acabo com ele ! - advertiu o Souza da Vacaria, que perdêra a virgindade da sua filha mais nova pro miserável do Zé.
- Vamos com calma - pediu o sargento Luizão, delegado recém-nomeado. Vocês têm que me ajudar a colocar o safado na cadeia. A justiça dará a sentença.
- De minha parte, tô de acordo - disse, baixinho, o coronel Lima, fazendeiro da região, que achara as calças e os sapatos do Zé no seu quarto de dormir, ao retornar de uma viagem. E concluiu, mais baixinho ainda, rangendo os dentes: Não foi sem razão que apelidei a minha doze de Justiça !
- Vamos organizar uma volante e sair atrás do cabra ! - decidiu o prefeito Apolinário, alisando a testa, como quem procurava os chifres.
Naquela mesma noite, avisado pela esposa de uma das autoridades presentes à reunião, Zé Maria deixou o casebre onde se encondera dentro do mato, roubou um cavalo no sítio mais próximo e tratou de cair fora. Já distante de Pau Ferro, resolveu tentar a estrada principal e pegou carona num caminhão que seguia pro interior de Minas.
- Vou pra uma cidadezinha chamada Belém - disse o motorista.
- Só pode ser milagre. É pra lá que estou indo - afirmou o Zé, fingindo espanto, de mãos postas, como que agradecendo aos céus.
- Deve ser um romeiro, com certeza.
- Por que diz isso ?
- A cidade vive de milagres - explicou o motorista.Todo dia chega gente por lá pra visitar a capela da virgem, a igreja do Menino, a cova do Padre Ernesto e outras coisas desse tipo. Com essa barba e esse cabelo comprido, você tem tudo para ser um romeiro ou um santo. Acertei ?
- É... sim, acertou.
- Acertei, como ?
- Sou um santo.
- Tá brincando...
- Claro que não.
- Como é seu nome ?
- Jesús.
Pensando tratar-se de uma piada, o motorista riu até não querer mais, enquanto o Zé, com um brilho estranho nos olhos, começava a planejar tudo o que iria fazer naquela cidade tão santa.
Viajaram durante todo o dia e, apesar da insistência do motorista, que sempre parava nos barracos na beira da estrada para se alimentar, o Zé não comeu absolutamente nada.
- Jesús... Coma alguma coisa. Eu pago.
- Não quero.
- Não se alimenta ?
- Deus é meu alimento.
Fazendo das tripas, coração, Zé Maria dava início ao seu plano.
Chegaram à Belém por volta das dez horas da noite e muitas pessoas se aglomeravam na casa vizinha à pensão onde o motorista se hospedava.
- Seu Valdemar... aconteceu uma tragédia - disse uma mulher, aflita, dirigindo-se ao motorista.
- O que houve, dona Mercês ?
- O Jorge do mercadinho... tá morrendo. Doutor Nereu já desenganou o coitado e o padre Serafim tá dando a extremunção. Foi de repente.
- Quero ir até lá - disse Zé.
- Esse é Jesús, dona Mercês. Ele quer ir até lá.
Dona Mercês olhou para o visitante, observou seus olhos azuis, seus cabelos castanhos caidos sobre os ombros, seu rosto delgado, a barba a emoldurar os lábios carnudos, e disse, quase em transe:
- Jesús... venha comigo.
Ao entrar na casa, a energia elétrica, que havia faltado, chegou, acendendo as luzes, como a iluminar a entrada do Zé Maria.
- Quero ficar a sós com o moribundo - disse, já dentro do quarto.
Dona Aurora, a mulher do Jorge, aos prantos, a pedido de Dona Mercês, resolveu atender ao estranho homem. Todos sairam do quarto, inclusive a quase-viúva, e, estando a sós com o quase-defunto, o Zé cochichou ao seu ouvido:
- Trate de abrir os olhos, seu corno, senão eu acabo de vez com você !
Por uma dessas coincidências que, às vezes, nem a ciência explica, o Jorge abriu os olhos, sentou-se na cama e foi logo perguntando:
- Quem é você ? Que faz aqui no meu quarto ?
- Eu sou Jesús. Vim para salva-lo. Você estava morto. Eu o trouxe de volta à vida - explicou o Zé Maria, com voz pausada.
- Você tá doido, homem - foi dizendo o Jorge, pondo-se de pé.
Imediatamente, o sabido do Zé apressou-se em abrir a porta do quarto e, dirigindo -se à viuva e aos que se encontravam na sala, disse:
- Entrem ! Fiz com que o Jorge voltasse à vida. Entrem todos.
Antes que o atordoado Jorge pudesse entender direito o que se passava, dona Aurora, aos gritos, entrou no quarto, abraçando-se o ex-defunto:
- Obrigado, meu Deus, o Jorginho está vivo ! Obrigado, Jesús !
- Não foi nada - disse o Zé.
- O milagre da ressurreição ! - exclamou Dona Mercês, ajoelhando-se aos pés do milagreiro.
Logo todas as beatas ali estavam, ajoelhadas diante do Zé, entoando cânticos e rezando na sala da casa, enquanto o “santo” pensava consigo mesmo:
- Estou feito.
Era tudo o que ele queria. De um dia para outro, não se falava em outra coisa: um novo Jesús surgira em Belém e, como primeiro milagre, fizera um morto voltar à vida. Reunidas, as mulheres da cidade, tendo à frente a sempre grata dona Aurora e a sempre espevitada dona Mercês, conseguiram forçar seus respectivos maridos a ajeitarem a vida do Zé. O Jorge entregou uma das suas casas, já mobiliada, ao homem que lhe salvára a vida. Um galpão foi transformado, a pedido do Zé, em um centro de atendimento, onde poderia receber mais de trinta pessoas de uma só vez. Na frente, fez questão de colocar uma placa, com os dizeres “Casa de Jesús”. O novo Messias atendia a todos, indistintamente, sem nada cobrar, mas as pessoas, incentivadas pela força da fé, nunca esqueciam de deixar algum dinheiro, em quantias que o salafrário sempre arranjava um jeito de sugerir. A seu favor, estava a lei das probabilidades, com cerca de cinquenta por cento dos enfermos que buscavam cura para seus males, saindo de lá com alguma melhora ou totalmente curados. Aos que continuavam tão doentes quanto antes, ele costumava dizer:
- É preciso ter fé. Volte dentro de quinze dias, quando a sua fé em Deus estiver no auge. Só assim poderei cura-lo.
Em pouco tempo, não se falava em outra coisa, em todo o sertão mineiro, senão no santo de Belém e nas suas curas milagrosas. E o Zé Maria, enquanto as romarias de vários estados vizinhos aumentavam à cada semana, ia vivendo a vida que pediu a Deus, com uma cidade inteira a seus pés, bem alimentado e confortavelmente instalado, sendo visitado, à noite, por devotas devidamente escolhidas, especialmente por seus atributos físicos. Para não trabalhar demais (coisa que não era do seu feitio), logo determinou que os atendimentos sòmente seriam feitos aos sábados e domingos, ficando o resto da semana reservado para meditação, quando ficava em casa, em companhia de três mulheres, que cozinhavam, lavavam, engomavam e atendiam a todos os seus desejos.
- Quem vai dormir comigo ?
- Eu ! - diziam as três a um só tempo.
- Já que não chegamos a um acordo, vamos dormir os quatro na mesma cama, para que ninguém fique com mágoa de ninguém - decidia, sabiamente, o tarado do Zé.
As complicações aumentaram pro lado do embusteiro, quando a notícia do santo saiu na televisão e nos jornais, com direito a entrevista no Fantástico e tudo o mais.
- Olha o santo, Apolinário ! - exclamou dona Olga, a mulher do prefeito, apontando pra TV.
- É... o homem existe mesmo - disse o Apolinário. E o prefeito de Belém é meu amigo. Deve estar ganhando muito dinheiro com essas romarias.
- Se o homem é seu amigo, por que a prefeitura não aluga um ônibus e não leva alguns dos nossos correligionários para ver o santo ? Até o coronel Lima, que anda com um reumatismo danado, disse que iria com a gente.
- É uma excelente maneira de conquistar o povo. Vamos alugar o ônibus hoje mesmo. O povo de Pau Ferro vai visitar Belém !
E foi assim que o doutor Medeiros, o prefeito de Belém, foi pessoalmente à casa do santo para pedir que ele, no domingo, não deixasse de atender à uma caravana, comandada por um velho amigo.
- Claro, prefeito. O senhor é quem manda. Quem é seu amigo é meu amigo também - disse o Zé Maria, que vivia de olho num terreno da prefeitura, cuja doação o prefeito já havia mandado preparar.
Quando o ônibus parou na praça da igreja, quem primeiro desceu foi o delegado Luizão, seguido de perto pelo Prefeito Apolinário, pelo coronel Lima e dois dos seus capangas, e pela mulherada de Pau Ferro.
Dentro do galpão, todos se aproximaram lentamente do santo, que estava de costas para o público, distante, em cima de um tablado, todo vestido com uma túnica branca que descia até os pés.
A um sinal, todos se ajoelharam e se benzeram, enquanto o santo se virava para a platéia.
Ao dar de cara com o delegado e o coronel Lima, ladeado pelos capangas armados, Zé Maria perdeu a fala, empalideceu e ficou, ali, parado, sem saber o que fazer.
- É ele ! É o Zé do Biu ! - gritou o delegado ! Mesmo com a barba, é ele !
- Vamos acabar com esse cabra safado ! - gritou o coronel, já sacando o revólver.
Tiros, gritos, confusão, e o Zé Maria saiu correndo, mergulhando de mata a dentro, perseguido de perto pelos desafetos.
Dizem que a perseguição se estendeu por todo o dia, entrando pela noite e muitos tiros se ouviram, a todo instante, ora vindo da mata fechada, ora ecoando nas pradarias, acompanhados de gritos e palavrões.
A partir desse dia, nunca mais se falou no santo, que deve ter ido, com certeza, morar no céu.
Ou no inferno, como bem queriam os seus perseguidores.