O
espelho
Não sabia mais o que fazer. Aquela
menina, realmente, acabaria por enlouquecê-lo. Culpa dele - sabia. Só dele.
Onde já se viu um velho de 70 anos andar por aí se apaixonando por meninhas
de 13 ? A coisa não podia acabar bem.
Pelo menos, para ele. E foi o que aconteceu.
Sempre se dera muito bem com os
pais da Moema. Não era de hoje que vendia carne ao “seu” Adelino e à dona Rosa, fregueses do açougue desde o dia em que
resolvera inaugura-lo na “Favela do Esqueleto”,
há mais de 18 anos. Quando a bichinha nasceu, foi ao cachimbo, bebeu e comeu
à vontade, divertiu-se, e até mandou, de presente, toda a carne da festa,
inclusive a mão-de-vaca. Segurou-a nos braços, ninando-a, encantado com
seu narizinho afilado, com sua boquinha.
Agora, estava ali, completamente
grilado com a Moema, mais menina do que moça, brincando na calçada do açougue
com outras molecas, de shortezinho curto, bum-bum empinado, pernas bem
torneadas, de olhinhos atrevidos a fita-lo sempre, cumprimentando-o:
- Bom dia, “seu” Ferreira !
Não dava pra segurar. Por mais que
tentasse disfarçar, já tinha gente
notando seus olhares gulosos em cima da guria.
- Quando crescer, vai ser um
mulherão, hein, “seu” Ferreira?
- Tás falando de quem, Biu ?
- Da Moema. Tá cada vez melhor.
- Acaba com isso. Não passa de uma
menina. Cuida do balcão. Vai trabalhar.
O
pior é que ele sabia que o Biu do Osso, seu empregado, estava com a razão: a
cada dia, a danada da Moema tomava jeito de mulher, com os peitinhos aparecendo
e o corpo tomando formas definitivas. Por vezes, dizia consigo mesmo que aquilo
era doidice. Lutava contra os arrepios que a simples presença da Moema lhe causava.
Procurava não olhar na direção em que ela se encontrava. Atendia fregueses. Fazia de conta que não via nada. Tentava
afastar cada pensamento que chegava, atiçando suas idéias. Mas de nada adiantava. Mesmo sem querer, lá
estava ele, mão no queixo, inteiramente abestalhado, olhos vidrados na
figurinha saltitante, logo ali, na calçada, às primeiras horas da manhã,
brincando com outras meninas, a cumprimenta-lo:
-
Bom dia, “seu” Ferreira !
Viúvo
há quase cinco anos, não conhecera outra mulher depois da morte de dona Isaura,
a esposa, a quem amara e respeitara a vida inteira que tiveram a dois. No
cemitério - o caixão à beira da cova aberta -, prometera a si mesmo que outra
mulher não haveria de ocupar o seu lugar. E vinha cumprindo, sem muito esforço, aquele pacto de morte, cuja
única testemunha era ele próprio. Para não pensar em outras mulheres, danou-se
a trabalhar, indo, comumente, até tarde da noite, chegando em casa mais morto
que vivo, o corpo pedindo pra dormir. Ampliou o açougue, passou a ganhar mais
dinheiro e, para o mundo em que vivia, estava rico, respeitado por todos, até
mesmo por traficantes, sequestradores e assaltantes, seus maiores clientes. Não
tinha mais nada o que pedir a São Jorge, seu protetor.
Até que surgiu a Moema.
- “Seu” Ferreira,
papai mandou dizer que separasse
uma buchada de bode das boas pro sábado.
Ao virar-se, sentiu os olhos
verdes de Moema dentro dos seus, entrando, como um raio, pelo corpo todo,
deixando-lhe momentâneamente sem fala.
- O senhor ouviu o que eu disse ?
- Ouvi... ouvi, sim - respondeu,
com certa dificuldade, refazendo-se da surpresa. Diga ao compadre Adelino que
vou separar a melhor buchada pra ele.
Debruçada no balcão, a blusinha
solta deixava ver os seios da menina, até os biquinhos róseos.
- É pro meu aniversário. Vou fazer
13 anos.
- Meus parabens adiantados - disse o açougueiro, sem tirar os
olhos do generoso decote.
- Obrigada.
Sorriu um sorriso lindo, virou-se
rápida e, cabelos longos e negros soltos ao vento, saiu correndo na direção de
casa.
- É pena que seja tão moça... -
comentou o Biu, aproximando-se. Já tô
beirando os 40 anos, mas se uma diabinha dessas me quisesse, eu mandava a velha
lá de casa pros quintos dos infernos.
- É uma menina, Biu. Nem sabe o
que é namorar.
- Essa é que é das boas, patrão. A
gente tem que ensinar tudo direitinho. E aposto que ela aprende ligeiro.
- Ao trabalho, Biu. Tem freguês no
balcão.
- E o pior - concluiu, quase
cochichando, o Biu - é que se a gente não
pegar logo, já, já, vem outro malandro e come !
Não resistindo mais à tentação -
ao receber a visita de Moema, ao cair da noite, e sem a presença irreverente do
Biu -, “seu” Ferreira resolveu arriscar um pouco mais de intimidade, a fim de
checar as suas chances.
- Quer dizer que o compadre
Adelino mandou me convidar pra festa do seu aniversário ?
- perguntou, com
um sorriso.
- É. Papai faz questão da sua
presença.
- E a aniversariante ? - quis
saber, passando a mão na cabeça da menina.
- Eu também. Gosto muito do
senhor.
- E o namorado... também vai ?
Ruborizada, limitou-se a sorrir.
- Já sei. Ainda não tem namorado - disse “seu”Ferreira - mas um dia
vai ter. Você já está uma mocinha. Logo, logo, vai pensar em casar.
- Só tenho 13 anos.
- Foi com 15 que a Isaura se casou
comigo. E fomos felizes a vida toda. Que Deus a tenha. E olhe que você já tem
mais jeito de mulher do que ela quando casamos. E é bem mais bonita.
Dona Rosa estava na porta da casa,
quando “seu Ferreira” chegou em sua camioneta.
- Comadre, trouxe o presente da
Moema.
- Não era preciso tanto trabalho,
compadre.
- Trabalho nenhum. Passei
numa vidraçaria e comprei um espelho. Do tamanho dela. Sei que toda
menina é vaidosa...
- Ela vai adorar, compadre. Quando
voltar da escola, já vai encontrar o presente na parede do quarto.
À noite, antes de dormir, Moema
costumava brincar com suas bonecas, na cama. Ficava ali, entretida, por horas a
fio, como que sonhando de olhos abertos. Fazia um calor danado e ela, fechando
a porta, ficou só de calcinha. Ao passar diante do espelho, viu-se por inteiro
e parou, demonstrando uma grande surpresa. Com as mãos nos quadris, viu-se, de
repente, nua, ali, no reflexo,
como se olhasse
para outra pessoa. Aproximou-se
mais e segurou os seios com as
duas mãos, arrebitando-os. Virou-se de costas e observou, por cima dos
ombros, a bunda bem-feita. Com movimentos suaves, retirou a calcinha. Passou a
mão direita na vagina e sentiu a penugem escura que começava a surgir.
Acariciou-a, como se não fosse dela. Levantou os braços e rodo-piou, como se
dançasse um balé. Olhou-se de lado, admirando aquele perfil perfeito. Ficou tão
perto do espelho que seu nariz afilado chegou a toca-lo e, como se falasse com
a própria imagem, confidenciou:
- “Seu” Ferreira tem razão: já sou
uma mulher.
As mãos voltaram a acariciar a
vagina. Gostava daqueles toques. Seus dedos se movimentavam em volta do
clitóris. Como num bailado sinuoso, contorcia os quadris. Via-se no espelho,
excitando-se ainda mais. Os movimentos do corpo já não tinha uma sequência
determinada. Ora estava em pé, ora de cócoras, e logo agarrou-se ao
travesseiro, puxando-o pra baixo de si, rolando pelo chão, para um lado e para
outro, até que, por fim, com um gemido, pareceu desfalecer, dormindo ali mesmo,
nua e feliz, com as bonecas, arrastadas da cama, jogadas ao seu lado.
No sábado, a buchada, servida por
volta das duas horas da tarde, acompanhada por muito chope e cachaça, entrou
pela noite a dentro, já que “seu” Ferreira, por sua conta, mandou contratar uns
pagodeiros, lá mesmo na favela, e todo mundo começou a dançar e a cantar, não
tendo mais hora a festa para terminar.
Lá pras tantas, já de madrugada, a
aniversariante tirou o “seu” Ferreira pra dançar.
O pagode corria solto:
- “Diz espelho meu
se há nesse mundo
alguém mais feliz que eu...”
Bêbado não estava, mas o açougueiro não acreditava no que
sentia: Moema se esfregava nele, excitando-o. E, vez por outra, dizia:
- Amanhã, à noite, irei ao açougue.
Tenho pena do senhor. Vive tão sozinho...
Ao chegar em casa, o sol já
nascendo, olhou-se no espelho. Estava um farrapo. O cansaço chegara ao extremo,
mas estava feliz. Viu-se de perto - as rugas, os cabelos brancos, a indecisão
no
olhar.
Mas sentiu-se inteiro. Completo. Disposto a viver.
- Ela disse que vinha...
Lembrou-se das palavras da menina
e sabia que ela não iria falhar: com certeza, haveria de
procura-lo.
- Tenho pena do senhor. Vive tão
sòzinho..
Ela garantiu que viria.
- Que venha - disse, pensando em
Moema e se deixando cair na cama, alegre como um menino.
- Seja o que Deus quiser -
balbuciou.
E dormiu a noite inteira. Como um
anjo.