terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O CONTO DO MÊS



O espelho
           
         Não sabia mais o que fazer. Aquela menina, realmente, acabaria por enlouquecê-lo. Culpa dele - sabia.  Só dele.  Onde já se viu um velho de 70 anos andar por aí se apaixonando por meninhas de 13  ? A coisa não podia acabar bem. Pelo menos, para ele. E foi o que aconteceu.
              Sempre se dera muito bem com os pais da Moema. Não era de hoje que vendia carne ao “seu”  Adelino e à dona Rosa,  fregueses do açougue desde o dia em que resolvera inaugura-lo na “Favela do Esqueleto”,  há mais de 18 anos.  Quando a bichinha  nasceu, foi ao cachimbo, bebeu e comeu à vontade, divertiu-se, e até mandou, de presente, toda a carne da festa, inclusive a mão-de-vaca. Segurou-a nos braços, ninando-a, encantado com seu narizinho afilado, com sua  boquinha.
              Agora, estava ali, completamente grilado com a Moema, mais menina do que moça, brincando na calçada do açougue com outras molecas, de shortezinho curto, bum-bum empinado, pernas bem torneadas, de olhinhos atrevidos a fita-lo sempre, cumprimentando-o:
              - Bom dia, “seu”  Ferreira !
              Não dava pra segurar. Por mais que tentasse disfarçar,  já tinha gente notando seus olhares gulosos em cima da guria.
              - Quando crescer, vai ser um mulherão, hein, “seu” Ferreira?
              - Tás falando de quem, Biu ?
              - Da Moema. Tá cada vez melhor.
              - Acaba com isso. Não passa de uma menina. Cuida do balcão. Vai trabalhar.
              O pior é que ele sabia que o Biu do Osso, seu empregado, estava com a razão: a cada dia, a danada da Moema tomava jeito de mulher, com os peitinhos aparecendo e o corpo tomando formas definitivas. Por vezes, dizia consigo mesmo que aquilo era doidice. Lutava contra os arrepios que a simples presença da Moema lhe causava. Procurava não olhar na direção em que ela se encontrava. Atendia fregueses. Fazia de conta que não via nada. Tentava afastar cada pensamento que chegava, atiçando suas idéias.  Mas de nada adiantava. Mesmo sem querer, lá estava ele, mão no queixo, inteiramente abestalhado, olhos vidrados na figurinha saltitante, logo ali, na calçada, às primeiras horas da manhã, brincando com outras meninas, a cumprimenta-lo:
              - Bom dia, “seu”  Ferreira !
              Viúvo há quase cinco anos, não conhecera outra mulher depois da morte de dona Isaura, a esposa, a quem amara e respeitara a vida inteira que tiveram a dois. No cemitério - o caixão à beira da cova aberta -, prometera a si mesmo que outra mulher não haveria de ocupar o seu lugar. E vinha cumprindo, sem  muito esforço, aquele pacto de morte, cuja única testemunha era ele próprio. Para não pensar em outras mulheres, danou-se a trabalhar, indo, comumente, até tarde da noite, chegando em casa mais morto que vivo, o corpo pedindo pra dormir. Ampliou o açougue, passou a ganhar mais dinheiro e, para o mundo em que vivia, estava rico, respeitado por todos, até mesmo por traficantes, sequestradores e assaltantes, seus maiores clientes. Não tinha  mais  nada o que pedir a São Jorge, seu protetor. Até que surgiu a Moema.
              - “Seu”  Ferreira,  papai  mandou dizer que separasse uma buchada de bode das boas pro sábado.
              Ao virar-se, sentiu os olhos verdes de Moema dentro dos seus, entrando, como um raio, pelo corpo todo, deixando-lhe momentâneamente sem fala.
              - O senhor ouviu o que eu disse ?
              - Ouvi... ouvi, sim - respondeu, com certa dificuldade, refazendo-se da surpresa. Diga ao compadre Adelino que vou separar a melhor buchada pra ele.
              Debruçada no balcão, a blusinha solta deixava ver os seios da menina, até os biquinhos róseos.
              - É pro meu aniversário. Vou fazer 13 anos.
              - Meus parabens  adiantados - disse o açougueiro, sem tirar os olhos do generoso decote.
              - Obrigada.
              Sorriu um sorriso lindo, virou-se rápida e, cabelos longos e negros soltos ao vento, saiu correndo na direção de casa.
              - É pena que seja tão moça... - comentou o Biu,  aproximando-se. Já tô beirando os 40 anos, mas se uma diabinha dessas me quisesse, eu mandava a velha lá de casa pros quintos dos infernos.
              - É uma menina, Biu. Nem sabe o que é namorar.
              - Essa é que é das boas, patrão. A gente tem que ensinar tudo direitinho. E aposto que ela aprende ligeiro.
              - Ao trabalho, Biu. Tem freguês no balcão.
              - E o pior - concluiu, quase cochichando, o Biu - é que se a gente não  pegar logo,  já,  já, vem outro malandro e come !
              Não resistindo mais à tentação - ao receber a visita de Moema, ao cair da noite, e sem a presença irreverente do Biu -, “seu” Ferreira resolveu arriscar um pouco mais de intimidade, a fim de checar as suas chances.
              - Quer dizer que o compadre Adelino mandou me convidar pra festa do seu aniversário ?
- perguntou, com um sorriso.
              - É. Papai faz questão da sua presença.
              - E a aniversariante ? - quis saber, passando a mão na cabeça da menina.
              - Eu também. Gosto muito do senhor.
              - E o namorado... também vai ?
              Ruborizada, limitou-se a sorrir.
              - Já sei. Ainda não tem  namorado - disse “seu”Ferreira - mas um dia vai ter. Você já está uma mocinha. Logo, logo, vai pensar em casar.
              - Só tenho 13 anos.
              - Foi com 15 que a Isaura se casou comigo. E fomos felizes a vida toda. Que Deus a tenha. E olhe que você já tem mais jeito de mulher do que ela quando casamos. E é bem mais bonita.
              Dona Rosa estava na porta da casa, quando “seu Ferreira” chegou em sua camioneta.
              - Comadre, trouxe o presente da Moema.
              - Não era preciso tanto trabalho, compadre.
              - Trabalho nenhum.  Passei  numa vidraçaria e comprei um espelho. Do tamanho dela. Sei que toda menina é vaidosa...
              - Ela vai adorar, compadre. Quando voltar da escola, já vai encontrar o presente na parede do quarto.
              À noite, antes de dormir, Moema costumava brincar com suas bonecas, na cama. Ficava ali, entretida, por horas a fio, como que sonhando de olhos abertos. Fazia um calor danado e ela, fechando a porta, ficou só de calcinha. Ao passar diante do espelho, viu-se por inteiro e parou, demonstrando uma grande surpresa. Com as mãos nos quadris, viu-se, de repente,  nua, ali,  no reflexo,  como  se  olhasse  para  outra pessoa. Aproximou-se mais e segurou os seios  com  as  duas mãos, arrebitando-os. Virou-se de costas e observou, por cima dos ombros, a bunda bem-feita. Com movimentos suaves, retirou a calcinha. Passou a mão direita na vagina e sentiu a penugem escura que começava a surgir. Acariciou-a, como se não fosse dela. Levantou os braços e rodo-piou, como se dançasse um balé. Olhou-se de lado, admirando aquele perfil perfeito. Ficou tão perto do espelho que seu nariz afilado chegou a toca-lo e, como se falasse com a própria imagem, confidenciou:
              - “Seu” Ferreira tem razão: já sou uma mulher.
              As mãos voltaram a acariciar a vagina. Gostava daqueles toques. Seus dedos se movimentavam em volta do clitóris. Como num bailado sinuoso, contorcia os quadris. Via-se no espelho, excitando-se ainda mais. Os movimentos do corpo já não tinha uma sequência determinada. Ora estava em pé, ora de cócoras, e logo agarrou-se ao travesseiro, puxando-o pra baixo de si, rolando pelo chão, para um lado e para outro, até que, por fim, com um gemido, pareceu desfalecer, dormindo ali mesmo, nua e feliz, com as bonecas, arrastadas da cama, jogadas ao seu lado.
              No sábado, a buchada, servida por volta das duas horas da tarde, acompanhada por muito chope e cachaça, entrou pela noite a dentro, já que “seu” Ferreira, por sua conta, mandou contratar uns pagodeiros, lá mesmo na favela, e todo mundo começou a dançar e a cantar, não tendo mais hora a festa para terminar.
              Lá pras tantas, já de madrugada, a aniversariante tirou o “seu” Ferreira pra dançar.
              O pagode corria solto:
              - “Diz espelho meu
                se há nesse mundo
                alguém mais feliz que eu...”
              Bêbado não estava,  mas o açougueiro não acreditava no que sentia: Moema se esfregava nele, excitando-o. E, vez por outra, dizia:
              - Amanhã, à noite, irei ao açougue. Tenho pena do senhor. Vive tão sozinho...
              Ao chegar em casa, o sol já nascendo, olhou-se no espelho. Estava um farrapo. O cansaço chegara ao extremo, mas estava feliz. Viu-se de perto - as rugas, os cabelos brancos, a indecisão no
olhar. Mas sentiu-se inteiro. Completo. Disposto a viver.
              - Ela disse que vinha...
              Lembrou-se das palavras da menina e sabia que ela não iria falhar: com certeza, haveria de
procura-lo.
              - Tenho pena do senhor. Vive tão sòzinho..
              Ela garantiu que viria.
              - Que venha - disse, pensando em Moema e se deixando cair na cama, alegre como um menino.
              - Seja o que Deus quiser - balbuciou.
              E dormiu a noite inteira. Como um anjo.  

                                                                

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