sábado, 31 de julho de 2010

CONTO DO MÊS - (JULHO 2010)


O BODE QUE DEU


Além do choque de ter visto o marido cair aos seus pés e ficar lá, no chão, completamente inconsciente, sem nem ao menos estribuchar, dona Ritinha teve um trabalho danado para encontrar o doutor Carneiro (mais conhecido, na cidade, com as devidas intenções, como doutor Caneiro ) e, mais ainda, para retira-lo do bar do Mandú, onde ficava, invariavelmente, todas as noites, até o começo da madrugada, tomando cachaça até não querer mais.

- A senhora está me dizendo que o Zéca, seu marido, caiu durinho no chão ? - perguntou o doutor, com a voz enrolada pelo efeito do álcool, depois de ouvir a mulher aflita repetir a história pela sexta vez.

- Está lá, doutor Carneiro. Nem se mexe. Parece que tá morto !

Sendo o único médico da pequena cidade de Flores, mesmo a contragosto, cambaleante, ajudado, aqui e ali, pela mulher, o doutor Carneiro teve que ir à casa da Dona Ritinha, do outro lado da rua, a uns 300 metros do bar.

Após auscultar o Zéca, que continuava estendido no chão da sala, olhou espantado para mulher, dizendo:

- O Zéca não podia ter feito isso.

E concluiu:

- Morreu sem pagar os 200 reais que me devia !

Depois dessa, dona Ritinha e as duas filhas trataram de cuidar do enterro. Dono de uma pequena bodega, Zéca era muito conhecido na cidade, mas vivia pobremente, já que gastava tudo o que ganhava no jogo e na bebida. O João Defunto, dono da mortuária, que vivia de olho na recente viúva (que não era de se jogar fora), não cobrou nada pelo caixão, e o velório logo começou, entrando pela madrugada. Às primeiras horas da manhã, já era grande o número de pessoas que se acotovelavam na pequena sala, onde estava o corpo do Zéca, dentro de um caixão aberto. A viúva, as filhas e alguns parentes choravam, enquanto os demais comentavam o fato, especialmente pela idade do falecido (50 anos... tão jovem !).

Foi quando alguém sentiu um repentino mal cheiro.

- Será que o defunto já tá fedendo ?

- Não pode ser. Deve ser a latrina...

Enquanto algumas pessoas tapavam as narinas com lenços e outras levantavam os pés, procurando algo mais na sola dos sapatos e chinelos, um bode pai-de-chiqueiro, vindo ninguém sabe de onde, começou a entrar na sala, encaminhando-se para o caixão. Abriu-se uma ala entre os presentes e o bode seguiu em frente, parando bem perto do rosto do defunto e, sem que ninguém pudesse fazer nada, lambeu a boca do Zéca.

Abrindo os olhos, sem entender nada, o Zéca se sentou no caixão e perguntou, irritado:

- Que diabo esse bode tá fazendo aqui, perto de mim ?

Não é difícil imaginar o que aconteceu em seguida. Só dona Ritinha, que desmaiou na hora, não fugiu em disparada. Foi um corre-corre danado. Saiu gente pelas janelas, pelas portas da frente e dos fundos e, em poucos minutos, só restavam, na sala, Zéca e o bode.

- Algum filho de Deus pode explicar o que tá havendo aqui ? - perguntava o ex-morto, sentado no caixão.

Foi ai que dona Guilhermina, a mais conhecida carola da cidade, dessas que só falta mesmo dormir na igreja (e as más línguas sempre garantiram que ela já dormiu várias vezes, fazendo companhia ao padre Ernesto - coitado ! - tão sozinho), entrou, pé ante pé na sala, ajoelhou-se diante do bode e exclamou:

- Milagre !

Com as mãos postas, olhos pro céu, ela foi adiante:

- O bode... o bode é milagreiro !

A partir daí, nem Deus explica o que houve na pequena cidade de Flores.

O dono do bode, Chico Tatú, que vivia enfurnado numa gruta nas cercanias da cidade, criando algumas cabras e o pai-de-chiqueiro, conseguiu, com a ajuda da Prefeitura, construir um palanque, para que o animal pudesse ser visto por milhares de pessoas, vindas de dezenas de municípios vizinhos. Todos queriam olhar, tocar e fazer pedidos ao bode-santo, que ficava, ali, no alto, como em um altar, comendo, mijando e cagando, enquanto a multidão rezava e entoava hinos.

O encontro do dono do terreno, onde se achava a gruta, o Zé do Carmo, com o Chico Tatú, deu novas cores ao caso. Os dois combinaram ganhar algum dinheiro, construíram uma cerca e passaram a cobrar ingresso.

As romarias continuaram, especialmente nos fins-de-semana, quando a população de Flores praticamente dobrava.

A bodega do Zéca, graças ao movimento proporcionado pelos romeiros, que queriam conhecer o beneficiário do milagre, foi ampliada, ganhou um maior estoque e logo se transformou na principal atração turística da região. Dona Ritinha, que era muito viva, passou a dar mais atenção ao João Defunto, já que o marido não tinha mais tempo pra ela.

A chamado do padre Ernesto, que via como uma desmoralização para a igreja aquela história de bode-santo, chegou à cidade, vindo da capital, o doutor Guedes.

O que o Zéca sofreu, padre, foi um ataque de catalepsia.

- Catale... o que ? - perguntou dona Guilhermina, ali, perto do padre, como sempre.

- Ca-ta-le-psia - respondeu, assoletrando, o médico. É uma morte aparente. Nada de pulsação.

Respiração mínima. Paralisia total. Se não estivesse tão bêbado, o doutor Carneiro teria detectado algum sinal de vida.

- Eu entendo, doutor. Não houve milagre - disse o padre. Mas como botar isso na cabeça dessa gente ?

- Não será fácil - asseverou o doutor Guedes. Pelo que vi lá fora, com milhares de psssoas rezando diante do bode, acho até mesmo impossível fazer com que o povo aceite um diagnóstico desses. Se a mentira é o alimento da fé, por que aceitar a verdade que destrói a fantasia ?

Não adiantaram os sermões do padre na igreja nem a palavra do médico forasteiro: a cada dia aumentava o número de pessoas que queriam ver o bode e pedir uma graça, para alegria do Zéca, do Chico Tatú e do Zé do Carmo, que continuavam faturando alto, isso para não falar no doutor Fulgêncio, o prefeito, que ia arrebanhando votos dos eleitores.

Só que o Zéca, cheio de dinheiro e bebendo mais do que nunca, depois de não sei quantas noites sem dormir, resolveu bater as botas de verdade.

- Agora, ele morreu mesmo - garantiu o doutor Carneiro, num instante qualquer de sobriedade.

- Eu não aguento outro velório ! - desabafou a viúva.

- Não sei se a coisa, agora, vale um caixão novinho - acrescentou, sem querer, um enfastiado João Defunto.

- Chama o bode de novo ! - lembrou dona Guilhermina.

Mesma sala, mesmo caixão, mesmo defunto, mesmo bode, mas muito mais pessoas no velório, inclusive jornalistas, fotógrafos, locutores de rádio, cinegrafistas, equipes de TV, o

diabo.

- Serei eleito deputado - sonhava o prefeito.

- Dessa vez, vamos ficar ricos de verdade ! - confidenciava o Zé do Carmo ao Chico Tatú.

Botaram o bode pertinho do Zéca e logo o bicho passou a lamber o rosto do defunto. E nada.

- Todo mundo rezando ! - pedia, com as mãos para o alto, dona Guilhermina.

Orações, cânticos, novas lambidas do bode e o Zéca continuava lá, cada vez mais morto, sem mexer um fio de cabelo sequer.

Dois dias depois, já sem aguentar mais o mal cheiro do bode e do defunto, os que ali se achavam resolveram, finalmente, enterrar o Zéca.

As pessoas foram embora, as romarias cessaram.

Logo no primeiro fim-de-semana, o Chico Tatú convidou os amigos para uma buchada de bode, regada à cachaça.

E nunca mais se falou no bode-santo.

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