terça-feira, 30 de novembro de 2010

CRÔNICA DA SAUDADE - 30/11/2010


O BRASIL DE ARY BARROSO


Logo no começo deste mês de novembro, no dia 7, fiquei devendo aos nossos leitores, uma crônica que enfocasse a passagem de mais um aniversário de um dos maiores compositores do Brasil, autor de músicas consagradas no país e no exterior, que é Ary Barroso.

Em 2003, visando divulgar o centenário do nascimento do velho Ary, convidei, através da Rádio Tabajara, todas as emissoras paraibanas, para que, naquela data, formassem uma rede musical, tocando, durante todo o dia, as músicas que tornaram conhecido em todo o mundo, não apenas o seu autor, mas – e principalmente – o seu país... a terra onde nasceu... o Brasil – já que o seu amado rincão sempre foi o tema preferido do compositor.

Ary Evangelista de Resende Barroso nasceu em Ubá, Minas Gerais, na Fazenda da Barrinha, no dia 7 de novembro de 1903. Órfão de pai e mãe, ainda criança, foi criado pela avó materna e por uma tia. Aos 12 anos, já tocava piano no cinema de sua cidade, fazendo fundo musical para filmes mudos. Em 1920, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde formou-se em direito, mas foi sòmente em 1928 – durante uma temporada que passou em Santos e em Poços de Caldas - que começou a compor as suas primeiras produções, como “Eu vou à Penha” e “Vamos Deixar de Intimidade”, que foram bem recebidas pelo público, já que estavam incluídas no seu primeiro disco. Em 1930, Ary venceu o concurso carnavalesco daquele ano com a marcha “Dá Nela”, mas foi com o samba-exaltação “Aquarela do Brasil”, em 1939, que ele se celebrizou, inovando a música popular brasileira, incorporando ao acompanhamento células rítmicas até então só conhecidas em instrumentos de percussão. Em cima da mesma linha patriótica, Ary Barroso compôs outras músicas, igualmente famosas, como “Na Baixa do Sapateiro”, em 1938, “Brasil Moreno”, em 1942, e “Terra Seca”, em 1943. Em 1944, convidado por Walt Disney, Ary Barroso fez, nos Estados Unidos, a música do filme “Você Já Foi à Bahia ?” e foi premiado pela Academia de Ciências e Artes Cinematográficas de Hollywood.

Como locutor e cronista esportivo, Ary Barroso fez fama na Rádio Tupi, do Rio (especialmente por torcer abertamente pelo seu Flamengo !), tendo criado, ao longo do tempo, vários programas, dentre eles o “Hora do Calouro” , de onde surgiram alguns dos maiores intérpretes da música popular brasileira, como Elza Soares e tantos outros. Recebeu a Ordem Nacional do Mérito, em 1955, como o mais patriota dos nossos compositores em todos os tempos.

Morreu no Rio de Janeiro, num domingo de carnaval, no dia 9 de fevereiro de 1964, após dizer, por telefone, ao seu amigo David Nasser: Acho que vou morrer. Estão tocando as minhas músicas no rádio.

Ary Barroso virou saudade e, no aniversário do seu nascimento, as suas músicas deveriam ser tocadas por esse Brasil a fora, homenageando, assim, quem tanto, em vida, homenageou a nossa terra.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

CRÔNICA DA SAUDADE – 22/11/10


O ETERNO TROVADOR


No dia 9 deste mês de novembro, não pude deixar de lembrar que, naquela data, no ano de 1983 – há 27 anos, portanto – morria de um derrame, em pleno show numa boate de Nova York, nos Estados Unidos, com apenas 43 anos de idade, o maior trovador da música brasileira e um dos maiores das Américas: Altemar Dutra.

O que mais marcou os seus fãs pessoenses, naquela época, é que Altemar havia se apresentado, fazia poucos dias, em um show na Lagoa do Parque Sólon de Lucena, causando emoção e arrancando aplausos entusiásticos de uma verdadeira multidão que se fez presente, cantando, com seu artista preferido, alguns dos seus maiores sucessos musicais. E quando sua voz ainda ecoava no coração dos pessoenses, eis que chegou a trágica notícia: Altemar Dutra, o trovador das Américas, havia falecido em Nova York, vítima de um derrame cerebral.

Mineiro da cidade de Aimorés, no interior de Minas Gerais, Altemar Dutra de Oliveira nasceu no dia 6 de outubro de 1940, mas logo mudou-se, ainda pequeno, para a cidade de Colatina. Logo cedo, demonstrou vocação para a música, tendo recebido, da mãe, como forma de incentivo, um violão, que logo começou a dedilhar e acabou por aprender a toca-lo sòzinho. E foi assim que se apresentou pela primeira vez em público, participando de um programa na Rádio Difusora de Colatina, onde ganhou o primeiro lugar, passando, a partir daí, a fazer sucesso na cidade, o que o incentivou a viajar, com apenas 17 anos, para o Rio de Janeiro, onde chegou, em 1957, levando uma carta de apresentação para o compositor Jair Amorim, que passou a promove-lo no meio artístico. Começou a cantar na Boate Bacarat, mas como era menor de idade, tinha que se esconder, vez por outra, do Juizado de Menores. A convite de Helena de Lima, passou a cantar na boate Cangaceiro, uma das mais famosas da cidade. Foi quando fez amizade com várias artistas já consagrados, como é o caso do Trio Iraquitã, cujo crooner o levou para a Odeon, em 1963. No mesmo ano, seu primeiro grande sucesso: Tudo de Mim, de Evaldo Gouveia e Jair Amorim. A partir daí, gravou outros grandes sucessos da mesma dupla, como Que queres tu de mim ?, O Trovador e Somos Iguais.Em 1965, surgiu o LP Sentimental Demais, cuja música-título se tornou uma marca do seu repertório. Em 1966, ainda da dupla Jair Amorim e Evaldo Gouveia, gravou Brigas, tendo declarado, num programa da Rede Globo, que é com essa música que gostaria de ser lembrado no futuro. À essa altura, seu sucesso já extrapolava as fronteiras brasileiras, chegando à toda a América Latina, com apresentações em vários países. As versões em espanhol dos seus grandes sucessos venderam mais de 500 mil cópias. Com o LP O Trovador das Américas, em 1969, Altemar se firmou como um dos maiores cantores latinos de todos os tempos, cantando ao lado dos grandes ícones do bolero, como é caso de Lucho Gatica. Após vários LPs de sucesso, gravou, em 1977, Sempre Romântico, e, em 1981, Eu Nunca Mais Vou Te Esquecer, dois discos realmente marcantes em sua carreira.

Altemar Dutra se foi, mas a sua saudade, através da musica, ficou para sempre no coração e na memória de todos os seus fãs, espalhados por esse imenso Brasil.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

A CRÕNICA DA SEMANA - 17/11/2010



ÚLTIMA PÁGINA

Sempre me apeguei a alguns veículos da imprensa brasileira, graças, principalmente, aos seus cronistas. Por causa de Rubem Braga, colecionei, por muito tempo, as edições do Diário da Noite, jornal editado no Rio, em tamanho tablóide, que embora não fosse tão bom quanto O Globo em se tratando de notícia, era primeiro sem segundo para mim por causa das crônicas do meu cronista preferido. E só parei de colecionar o jornal porque, num certo dia, ele deixou de circular.

Com a revista O Cruzeiro não foi diferente: rendi-me aos encantos da revista, como um todo, indo das reportagens de David Nasser ao Amigo da Onça, do meu amigo Péricles, mas não tinha como fugir à sua principal atração, ao pedacinho da edição que me cativava tanto e que, por capricho da natureza, ficava em sua última página: as crônicas, sempre belas e humanas, escritas por Rachel de Queiroz.

Era a única revista que muita gente, como eu, começava a ler por sua última página, de trás para frente, pois era lá, na última página, que estava a crônica de Rachel.

Nascida em 17 de novembro de 1910, em Fortaleza, no Ceará, Rachel de Queiroz se destacou como escritora, publicando os livros O Quinze, As Três Marias, Lampião e tantos outros, além das peças teatrais A Beata Maria do Egito e O Menino Mágico, obras premiadas nacionalmente.

Cronista emérita, publicou mais de duas mil crônicas, cuja seleção de algumas delas proporcionou a publicação dos seguintes livros: A Donzela e a Moura Torta, 100 crônicas escolhidas, O Brasileiro Perplexo e O Caçador de Tatu.

Tendo sido a primeira mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras- eleita para a Cadeira nº 5, em 4 de agosto de 1977, na sucessão de Cândido Mota Filho – Rachel de Queiroz foi recebida, em 4 de novembro de 1977, pelo acadêmico Adonias Filho, acabando, de uma vez por todas, com o famoso clube do Bolinha (onde menina não entrava) da nossa maior academia.

Em suas crônicas, contava, com simplicidade, as novidades da semana e conquistava, à cada história que relatava, a admiração de milhares de leitores. No dia de ontem, 04 de novembro, os brasileiros lamentaram os três anos de saudades de Raquel, desde o dia em que Deus a levou do nosso convívio com a mesma tranqüilidade com que ela sempre viveu entre nós.

Naquele dia fatídico, ela se deitou para dormir, pensou em Deus como sempre e adormeceu - para nunca mais acordar.

E foi assim que Rachel de Queiroz passou a viver o sonho da eternidade.



sexta-feira, 12 de novembro de 2010

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A CRÔNICA DO DIA – 12/11/2010



PRESENÇA DE AUGUSTO

Não há como separar o poeta da sua terra natal. Por mais que ele tenha vivido no sul do país, a sua história, como a sua sombra, teria de ficar aqui.

Augusto Carvalho Rodrigues dos Anjos nasceu logo ali, em Cruz do Espírito Santo, no dia 20 de abril de 1884, filho de Alexandre Rodrigues dos Anjos e de Sinhá Mocinha – dona Córdula de Carvalho Rodrigues dos Anjos. A partir daí, a vida do maior poeta brasileiro é uma presença constante e marcante na história de João Pessoa. Em 1900, começa a estudar no Lyceu Paraibano e escreve o seu primeiro soneto: “Saudade”. Em 1901 passa a colaborar com o jornal O Comércio, da capital, onde publica vários sonetos que haveriam de fazer parte do livro Eu e outras poesias.

Muitas são as datas determinantes em sua vida que o tornaram cada vez mais ligado à esta cidade. Em 1905, amargurou a morte do dr. Alexandre, seu pai. Em 1907 concluiu o curso de Direito no Recife e, no ano seguinte, transferiu-se para João Pessoa, onde passou a dar aulas particulares. Neste mesmo ano, morreu Aprígio Pessoa de Melo, padrasto de sua mãe e patriarca da família, deixando o Engenho Pau Darco em grave situação financeira. Augusto passou a lecionar no Instituto Maciel Pinheiro e foi nomeado professor do Lyceu Paraibano. Os leitores do jornal A União já começavam a se encantar com os sonetos publicados por Augusto. Foi assim com o soneto Budismo Moderno e numerosos outros poemas. No Teatro Santa Roza, nas comemorações do 13 de maio, chocou a platéia com suas palavras aparentemente sem nexo e bizarras. Publicou ainda, em A União, os sonetos Mistério de um fósforo e Noite de um Visionário. Aqui mesmo, casou-se com Éster Fialho. Sua família vende o Engenho Pau Darco e ele, sem conseguir licenciar-se do Lyceu, demite-se e embarca com a mulher para o Rio de Janeiro. Em 1911, Augusto é nomeado professor de Geografia, Corografia e Cosmografia do Ginásio Nacional – atual Colégio Pedro II. Nasce sua filha Gloria. Colabora no jornal O Estado e dá aulas na Escola Normal. Augusto e seu irmão Odilon custeiam a impressão de 1.000 exemplares do livro Eu. A crítica o recebe ao mesmo tempo com aplauso e repulsa. Nasce seu filho Guilherme Augusto. Em 1914 publica O Lamento das Coisas na Gazeta de Leopoldina, dirigida por seu concunhado Rômulo Pacheco. É nomeado diretor do Grupo Escolar de Leopoldina, para onde se transfere. Doente desde o dia 30 de outubro, faleceu às 4 horas da madrugada do dia 12 de novembro, de pneumonia, aos 30 anos de idade.

Fiz questão de contar a história da vida de Augusto dos Anjos com a mesma rapidez que ele impôs à sua passagem entre nós.

Mas ficou patente que ele não tem como fugir das suas profundas raízes com a Paraíba: como todo bom escritor paraibano, estudou no Lyceu, publicou versos em A União e jamais será esquecido pelo seu povo.

Vida breve... presença eterna.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O CONTO DO MÊS - NOVEMBRO


O trigéssimo primeiro tiro
Quando alguém contratava os serviços do Zé das Cruzes, podia ficar tranquilo: era tiro e queda - a família da vítima que tratasse de escolher o caixão.

- Até hoje, ele não errou um só tiro: seu fuzil disparou trinta vezes e trinta encomendas foram devidamente entregues - dizia Pedro Vaqueiro, exaltando as virtudes do pistoleiro. Pode contratar o homem, patrão, que ele dá conta do recado.

- E quanto à língua dele, Pedro ? Sabe guardar segredo ? - quis saber o coronel Hortêncio, rico fazendeiro daquela região do interior pernambucano.

- Sem querer fazer trocadilho, coronel, o das Cruzes é como um túmulo. Acabado o serviço, tudo aquilo, pra ele, é como se não tivesse acontecido.

- Pelo visto, o homem não tem defeito.

- Só tem um: cobra caro. O senhor não vai conseguir com que ele mate a prefeita por menos de 30 mil. Se fosse um vereador, ficaria em torno de 15.

- Prefiro pagar mais e continuar tranquilo. Diga-lhe que quero falar com ele.

- Terei que ir pessoalmente ao Ceará. Dentro de dois ou três dias ele estará por aqui.

- Tome o cheque da sua viagem. Passe pelo banco, retire o dinheiro e só me chegue aqui com o pistoleiro. Essa mulherzinha vai aprender a não se meter com o coronel Hortêncio !

Sem dizer mais nenhuma palavra, Pedro Vaqueiro saiu da casa grande da fazenda, montou o cavalo e partiu em direção a cidade, deixando o coronel sentado na cadeira de balanço, alisando a barba, pensativo, como se antevesse o prazer de vingar-se da prefeita de Flores, dona Matilde, mulher-macho, dessas que topam qualquer parada, que chegam a dar um boi pra não entrar numa briga, mas que são capazes de dar uma boiada para não sair. Na última eleição, a contra gosto, é bem verdade, já que a mulher estava declaradamente eleita, o coronel deu o seu apoio de última hora, tentando botar água fría na antiga briga por causa de uns impostos não pagos pelo fazendeiro e sempre cobrados pela mulher que, na gestão anterior, era Secretária da Fazenda. Tão logo tomou posse como prefeita, dona Matilde, no seu primeiro discurso, tendo o coronel ao seu lado, prometeu cobrar o dinheiro do povo que estava no bolso de meia dúzia de fazendeiros, ricos e caloteiros. Ante os aplausos da multidão, o poderoso coronel Hortêncio desceu do palanque fumaçando de raiva e, a partir dali, uma guerra sem tréguas estava declarada.

- Essa maldita prefeita vai deixar de me esnobar ! - rosnou, trincando os dentes.

E não era de hoje que a dona Matilde o esnobava. Tendo ficado viúva, quase quinze anos, ao morrer o doutor Euclides, o marido, em um acidente de automóvel, ela era uma jovem e linda mulher - encantadora, morena de olhos verdes e cabelos negros como uma noite escura , que vivia enlouquecendo os corações dos homens. Durante quase um ano, o coronel Hortêncio fez de tudo para conquistá-la, chegando, até mesmo, a pedi-la em casamento, mas acabou por descobrir que o amor da dona Matilde era algo que nem os seus bois nem o seu dinheiro podiam comprar. Fiel à memória do falecido, tornou-se querida e respeitada na cidade, a ponto de se eleger prefeita com larga margem de votos. Vingativo, o desprezado fazendeiro passou a persegui-la, dificultando a sua administração, mas recebendo, em troca, com amparo legal, uma implacável cobrança de impostos, antes sonegados, que a Secretária da Fazenda de ôntem e a prefeita de hoje queria receber a todo custo.

- Em vez de dinheiro, ela vai receber uma bala ! - pensou o coronel, olhando uma foto da mulher, com dois olhos faiscando de fogo.

Após uma viagem que durou dois dias, Pedro Vaqueiro retornou à fazenda e se apresentou ao coronel, embora já fosse tarde da noite.

- O homem tá aí, coronel.

- Não quero perder mais tempo. Mande-o entrar.

Alguns minutos após Pedro sair, a porta foi aberta e o pistoleiro, assim que entrou, tornou a fechá-la, ficando a sós com o fazendeiro.

- Aqui estou, coronel.

- Aproxime-se.

Era uma figura por demais estranha. Todo vestido de preto, alto e magro, com um grosso bigode sobre os lábios finos, o que se destacava, na palidez do seu rosto, eram seus olhos negros e fríos, quase sem brilho. Por fora da camisa, volteando o pescoço e se dependurando sobre o peito cabeludo, uma corrente de ouro, onde vários crucifixos se amontoavam. Trinta, com certeza. Um para cada serviço feito.

- Sente-se.

- Não disponho de muito tempo, coronel. Gostaria que fosse direto ao assunto.

- Quero que mate a prefeita daqui.

- É pra logo ?

- O mais rápido que puder. Hoje... amanhã...

- Amanhã, se ela estiver na cidade.

- Está. Ela sempre está na cidade.

- Endereço, nome e foto.

- Tá aqui, neste envelope. Deixe para abrir no hotel. No outro envelope, está seu dinheiro.

- O senhor é bom de negócio, coronel, mas eu também sou. Pode considerar morta essa mulher. Eu nunca falho. Foram trinta tiros disparados por este fuzil e trinta mortes. O tiro pode ser na cabeça ou no coração. Pode escolher.

- Fique à vontade.

- Hoje, à noite, dormirei nas montanhas, pra não levantar suspeita. Amanhã, cedinho, estarei de volta, sem que ninguém me veja. À tarde, essa mulher sairá do seu caminho.

- Boa sorte.

- A sorte nunca deixou de estar do meu lado. Boa noite.

- Boa noite.

Como se fizesse parte da escuridão, Zé das Cruzes botou uma mochila nas costas e, segurando o fuzil, logo se afastou, confundindo-se com as sombras que dominavam todo o caminho, rumo às montanhas.

Numa gruta, acendeu uma vela, retirou da mochila um lençol, acendeu um cigarro, deitou-se sobre uma pedra e começou a abrir o envelope. Ao retirar o papel onde estava a foto e alguns dados sobre a sua vítima, sentiu um estremecimento. Ficou mais pálido ainda. A respiração se tornou ofegante. Aproximou a vela para ver melhor. Não queria acreditar no que via.

- Matilde ! - exclamou, num grito abafado.

Transtornado, quase em pânico, pôs as mãos na cabeça num gesto de desespero, enquanto algumas lembranças, que julgava esquecidas, começaram a aparecer, na semi-escuridão da caverna, com perfeita nitidez, refazendo cenas de um passado distante, como se estivessem acontecendo naquele exato momento.

- Não pode ser... Matilde !

Eles eram jovens e estavam perdidamente apaixonados. Numa cidadezinha do interior da Paraíba, o confronto de classes. Ela, filha de um juiz de direito. Ele, um zé-ninguém, sem ter onde cair morto, filho de um simples vaqueiro e de uma lavadeira, ambos trabalhando na casa do pai da moça. Tendo que trabalhar na roça, mal aprendera a ler. Matilde, por sua vez, tivera educação esmerada, preparava-se para entrar na universidade da capital, de onde somente sairia formada em direito, como o pai. Cortejada pelo doutor Euclides, com cujo namoro o pai se encantava, embora fosse bem mais velho que a filha, que chance teria o pobre do Zé, sem possibilidade de oferecer à sua amada futuro nenhum ? Por mais que se amassem , a diferença de classes acabaria falando mais alto, apesar das negativas de Matilde:

- O nosso amor será maior que tudo. Minha família terá que entender. Nós nos amamos ! - dizia, aflita.

Às ocultas, continuaram se encontrando por algum tempo, até que um dia, o pai descobriu tudo e passou a mantê-la em casa, como uma prisioneira. Procurado pelo delegado, Zé recebeu o conselho:

- O juiz pode acabar com sua vida, Zé. Pode metê-lo na prisão.

- Desde quando amar é crime, delegado ?

- Desde que a pessoa amada seja a filha de um juiz, que detém, nas mãos, mais poderes do que pode imaginar. Caia fora. Desapareça. Será melhor pra você.

Revoltado, o Zé foi embora. Virou matador. Buscou outros caminhos. Mudou seu destino.

Como pistoleiro, jamais havia voltado a encontrar-se com a mulher da sua vida. Agora, estava ali, naquela caverna escura, diante de um dilema. A seu modo, tornara-se famoso. A sua fama era tanta que virára lenda. Mas uma coisa era certa: nunca, desde que disparára o primeiro tiro, deixára de cumprir um trato. Foram 30 acertos, 30 tiros, 30 mortes. Jamais falhára com a palavra dada. Até aquele instante. Com o rosto de Matilde projetado na semi-escuridão, ainda jovem e sorridente, angustiava-se ante a possibilidade de matá-la. Justamente ela - o único e verdadeiro amor de toda a sua vida.

Não conseguiu mais dormir naquela noite longa, e foi assim, cansado e insone, que viu a madrugada chegar. Já de pé, foi ao encontro da luz. Por alguns instantes, recebeu os primeiros raios do sol, como se quisesse exorcizar os fantasmas daquela noite angustiante.

Fuzil à mão, mochila às costas, começou a caminhar em direção à cidade.

Diante da casa da prefeita, sentou-se por trás de um pedregulho, de onde, sem que ninguém o visse, tinha uma visão estratégica das pessoas que ali se encontravam. Por uma janela aberta, pôde rever, em rápidos lances, depois de tantos anos, a sua Matilde. E ela continuava linda co-mo antes, parecendo mais forte e majestosa, em seu porte de rainha. Pela mira telescópica do fuzil, observou melhor o seu rosto, os seus olhos, a sua boca tantas vezes beijada.

E tomou uma decisão.

- Que faz aqui ? - perguntou, assustado, o coronel Hortêncio.

- Precisava conversar a sós com o senhor. Quero que desfaça o trato que fizemos. Vim devolver seu dinheiro.

- Nada disso, cabra - disse o fazendeiro, recuperando a calma. Fizemos um trato. Trate de cumpri-lo ou não sairá daqui com vida.

Um único tiro atingiu o coronel na testa, deixando-o, por alguns segundos, de olhos arregalados, de pé, sem dizer mais nada, até que caiu pesadamente no chão.

Enquanto o pistoleiro saltava pela janela, ganhava o telhado da casa e descia mais adiante, ultrapassando o cercado da fazenda, os capangas do fazendeiro, tendo a frente o Pedro Vaqueiro, conseguiam abrir a porta da sala e davam de cara com o patrão, em meio à uma poça de sangue, já sem vida.

Antes de buscar as montanhas e fugir dali, não se conteve: parou diante de Matilde, que se encaminhava para a prefeitura, com alguns dos seus secretários.

- Bom dia, prefeita.

Apenas por segundos seus olhos se encontraram, mas foi o bastante para que a mulher sentisse algo diferente - um misto de alegria e de tristeza, que não sabia explicar.

- Bom dia, senhor.

Sem perder tempo, Zé das Cruzes se afastou rapidamente e logo tomou os caminhos das montanhas, desaparecendo, como por encanto.

Por instantes, dona Matilde ainda procurou lembrar-se de onde conhecera o estranho que a cumprimentára e que a tocára com o seu olhar. Os mesmos olhos do seu filho. Aquele que nascêra antes do seu primeiro casamento e que nunca conhecêra o pai: um qualquer que, um dia, fugira da sua vida para nunca mais voltar.

Mas que fôra, sem dúvida, o amor da sua vida.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010