sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O CONTO DO MÊS - NOVEMBRO


O trigéssimo primeiro tiro
Quando alguém contratava os serviços do Zé das Cruzes, podia ficar tranquilo: era tiro e queda - a família da vítima que tratasse de escolher o caixão.

- Até hoje, ele não errou um só tiro: seu fuzil disparou trinta vezes e trinta encomendas foram devidamente entregues - dizia Pedro Vaqueiro, exaltando as virtudes do pistoleiro. Pode contratar o homem, patrão, que ele dá conta do recado.

- E quanto à língua dele, Pedro ? Sabe guardar segredo ? - quis saber o coronel Hortêncio, rico fazendeiro daquela região do interior pernambucano.

- Sem querer fazer trocadilho, coronel, o das Cruzes é como um túmulo. Acabado o serviço, tudo aquilo, pra ele, é como se não tivesse acontecido.

- Pelo visto, o homem não tem defeito.

- Só tem um: cobra caro. O senhor não vai conseguir com que ele mate a prefeita por menos de 30 mil. Se fosse um vereador, ficaria em torno de 15.

- Prefiro pagar mais e continuar tranquilo. Diga-lhe que quero falar com ele.

- Terei que ir pessoalmente ao Ceará. Dentro de dois ou três dias ele estará por aqui.

- Tome o cheque da sua viagem. Passe pelo banco, retire o dinheiro e só me chegue aqui com o pistoleiro. Essa mulherzinha vai aprender a não se meter com o coronel Hortêncio !

Sem dizer mais nenhuma palavra, Pedro Vaqueiro saiu da casa grande da fazenda, montou o cavalo e partiu em direção a cidade, deixando o coronel sentado na cadeira de balanço, alisando a barba, pensativo, como se antevesse o prazer de vingar-se da prefeita de Flores, dona Matilde, mulher-macho, dessas que topam qualquer parada, que chegam a dar um boi pra não entrar numa briga, mas que são capazes de dar uma boiada para não sair. Na última eleição, a contra gosto, é bem verdade, já que a mulher estava declaradamente eleita, o coronel deu o seu apoio de última hora, tentando botar água fría na antiga briga por causa de uns impostos não pagos pelo fazendeiro e sempre cobrados pela mulher que, na gestão anterior, era Secretária da Fazenda. Tão logo tomou posse como prefeita, dona Matilde, no seu primeiro discurso, tendo o coronel ao seu lado, prometeu cobrar o dinheiro do povo que estava no bolso de meia dúzia de fazendeiros, ricos e caloteiros. Ante os aplausos da multidão, o poderoso coronel Hortêncio desceu do palanque fumaçando de raiva e, a partir dali, uma guerra sem tréguas estava declarada.

- Essa maldita prefeita vai deixar de me esnobar ! - rosnou, trincando os dentes.

E não era de hoje que a dona Matilde o esnobava. Tendo ficado viúva, quase quinze anos, ao morrer o doutor Euclides, o marido, em um acidente de automóvel, ela era uma jovem e linda mulher - encantadora, morena de olhos verdes e cabelos negros como uma noite escura , que vivia enlouquecendo os corações dos homens. Durante quase um ano, o coronel Hortêncio fez de tudo para conquistá-la, chegando, até mesmo, a pedi-la em casamento, mas acabou por descobrir que o amor da dona Matilde era algo que nem os seus bois nem o seu dinheiro podiam comprar. Fiel à memória do falecido, tornou-se querida e respeitada na cidade, a ponto de se eleger prefeita com larga margem de votos. Vingativo, o desprezado fazendeiro passou a persegui-la, dificultando a sua administração, mas recebendo, em troca, com amparo legal, uma implacável cobrança de impostos, antes sonegados, que a Secretária da Fazenda de ôntem e a prefeita de hoje queria receber a todo custo.

- Em vez de dinheiro, ela vai receber uma bala ! - pensou o coronel, olhando uma foto da mulher, com dois olhos faiscando de fogo.

Após uma viagem que durou dois dias, Pedro Vaqueiro retornou à fazenda e se apresentou ao coronel, embora já fosse tarde da noite.

- O homem tá aí, coronel.

- Não quero perder mais tempo. Mande-o entrar.

Alguns minutos após Pedro sair, a porta foi aberta e o pistoleiro, assim que entrou, tornou a fechá-la, ficando a sós com o fazendeiro.

- Aqui estou, coronel.

- Aproxime-se.

Era uma figura por demais estranha. Todo vestido de preto, alto e magro, com um grosso bigode sobre os lábios finos, o que se destacava, na palidez do seu rosto, eram seus olhos negros e fríos, quase sem brilho. Por fora da camisa, volteando o pescoço e se dependurando sobre o peito cabeludo, uma corrente de ouro, onde vários crucifixos se amontoavam. Trinta, com certeza. Um para cada serviço feito.

- Sente-se.

- Não disponho de muito tempo, coronel. Gostaria que fosse direto ao assunto.

- Quero que mate a prefeita daqui.

- É pra logo ?

- O mais rápido que puder. Hoje... amanhã...

- Amanhã, se ela estiver na cidade.

- Está. Ela sempre está na cidade.

- Endereço, nome e foto.

- Tá aqui, neste envelope. Deixe para abrir no hotel. No outro envelope, está seu dinheiro.

- O senhor é bom de negócio, coronel, mas eu também sou. Pode considerar morta essa mulher. Eu nunca falho. Foram trinta tiros disparados por este fuzil e trinta mortes. O tiro pode ser na cabeça ou no coração. Pode escolher.

- Fique à vontade.

- Hoje, à noite, dormirei nas montanhas, pra não levantar suspeita. Amanhã, cedinho, estarei de volta, sem que ninguém me veja. À tarde, essa mulher sairá do seu caminho.

- Boa sorte.

- A sorte nunca deixou de estar do meu lado. Boa noite.

- Boa noite.

Como se fizesse parte da escuridão, Zé das Cruzes botou uma mochila nas costas e, segurando o fuzil, logo se afastou, confundindo-se com as sombras que dominavam todo o caminho, rumo às montanhas.

Numa gruta, acendeu uma vela, retirou da mochila um lençol, acendeu um cigarro, deitou-se sobre uma pedra e começou a abrir o envelope. Ao retirar o papel onde estava a foto e alguns dados sobre a sua vítima, sentiu um estremecimento. Ficou mais pálido ainda. A respiração se tornou ofegante. Aproximou a vela para ver melhor. Não queria acreditar no que via.

- Matilde ! - exclamou, num grito abafado.

Transtornado, quase em pânico, pôs as mãos na cabeça num gesto de desespero, enquanto algumas lembranças, que julgava esquecidas, começaram a aparecer, na semi-escuridão da caverna, com perfeita nitidez, refazendo cenas de um passado distante, como se estivessem acontecendo naquele exato momento.

- Não pode ser... Matilde !

Eles eram jovens e estavam perdidamente apaixonados. Numa cidadezinha do interior da Paraíba, o confronto de classes. Ela, filha de um juiz de direito. Ele, um zé-ninguém, sem ter onde cair morto, filho de um simples vaqueiro e de uma lavadeira, ambos trabalhando na casa do pai da moça. Tendo que trabalhar na roça, mal aprendera a ler. Matilde, por sua vez, tivera educação esmerada, preparava-se para entrar na universidade da capital, de onde somente sairia formada em direito, como o pai. Cortejada pelo doutor Euclides, com cujo namoro o pai se encantava, embora fosse bem mais velho que a filha, que chance teria o pobre do Zé, sem possibilidade de oferecer à sua amada futuro nenhum ? Por mais que se amassem , a diferença de classes acabaria falando mais alto, apesar das negativas de Matilde:

- O nosso amor será maior que tudo. Minha família terá que entender. Nós nos amamos ! - dizia, aflita.

Às ocultas, continuaram se encontrando por algum tempo, até que um dia, o pai descobriu tudo e passou a mantê-la em casa, como uma prisioneira. Procurado pelo delegado, Zé recebeu o conselho:

- O juiz pode acabar com sua vida, Zé. Pode metê-lo na prisão.

- Desde quando amar é crime, delegado ?

- Desde que a pessoa amada seja a filha de um juiz, que detém, nas mãos, mais poderes do que pode imaginar. Caia fora. Desapareça. Será melhor pra você.

Revoltado, o Zé foi embora. Virou matador. Buscou outros caminhos. Mudou seu destino.

Como pistoleiro, jamais havia voltado a encontrar-se com a mulher da sua vida. Agora, estava ali, naquela caverna escura, diante de um dilema. A seu modo, tornara-se famoso. A sua fama era tanta que virára lenda. Mas uma coisa era certa: nunca, desde que disparára o primeiro tiro, deixára de cumprir um trato. Foram 30 acertos, 30 tiros, 30 mortes. Jamais falhára com a palavra dada. Até aquele instante. Com o rosto de Matilde projetado na semi-escuridão, ainda jovem e sorridente, angustiava-se ante a possibilidade de matá-la. Justamente ela - o único e verdadeiro amor de toda a sua vida.

Não conseguiu mais dormir naquela noite longa, e foi assim, cansado e insone, que viu a madrugada chegar. Já de pé, foi ao encontro da luz. Por alguns instantes, recebeu os primeiros raios do sol, como se quisesse exorcizar os fantasmas daquela noite angustiante.

Fuzil à mão, mochila às costas, começou a caminhar em direção à cidade.

Diante da casa da prefeita, sentou-se por trás de um pedregulho, de onde, sem que ninguém o visse, tinha uma visão estratégica das pessoas que ali se encontravam. Por uma janela aberta, pôde rever, em rápidos lances, depois de tantos anos, a sua Matilde. E ela continuava linda co-mo antes, parecendo mais forte e majestosa, em seu porte de rainha. Pela mira telescópica do fuzil, observou melhor o seu rosto, os seus olhos, a sua boca tantas vezes beijada.

E tomou uma decisão.

- Que faz aqui ? - perguntou, assustado, o coronel Hortêncio.

- Precisava conversar a sós com o senhor. Quero que desfaça o trato que fizemos. Vim devolver seu dinheiro.

- Nada disso, cabra - disse o fazendeiro, recuperando a calma. Fizemos um trato. Trate de cumpri-lo ou não sairá daqui com vida.

Um único tiro atingiu o coronel na testa, deixando-o, por alguns segundos, de olhos arregalados, de pé, sem dizer mais nada, até que caiu pesadamente no chão.

Enquanto o pistoleiro saltava pela janela, ganhava o telhado da casa e descia mais adiante, ultrapassando o cercado da fazenda, os capangas do fazendeiro, tendo a frente o Pedro Vaqueiro, conseguiam abrir a porta da sala e davam de cara com o patrão, em meio à uma poça de sangue, já sem vida.

Antes de buscar as montanhas e fugir dali, não se conteve: parou diante de Matilde, que se encaminhava para a prefeitura, com alguns dos seus secretários.

- Bom dia, prefeita.

Apenas por segundos seus olhos se encontraram, mas foi o bastante para que a mulher sentisse algo diferente - um misto de alegria e de tristeza, que não sabia explicar.

- Bom dia, senhor.

Sem perder tempo, Zé das Cruzes se afastou rapidamente e logo tomou os caminhos das montanhas, desaparecendo, como por encanto.

Por instantes, dona Matilde ainda procurou lembrar-se de onde conhecera o estranho que a cumprimentára e que a tocára com o seu olhar. Os mesmos olhos do seu filho. Aquele que nascêra antes do seu primeiro casamento e que nunca conhecêra o pai: um qualquer que, um dia, fugira da sua vida para nunca mais voltar.

Mas que fôra, sem dúvida, o amor da sua vida.

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