sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O CONTO DO MÊS - JANEIRO 2011









EM NOME DA VIDA

Já não aguentava mais. Fizera uso de todo o aprendizado familiar de quase trinta e cinco anos - aquela ladainha de que pai é pai, que respeito é bom e ele merece, que se matou de trabalhar para cuidar da gente e a recíproca tem que ser verdadeira, que quem renega o pai não merece viver, e dezenas de outros conceitos desse mesmo naipe -, mas (e como é difícil reconhecer isso !) já não tinha mais saco para continuar aguentando aquela situação, que se complicava cada vez mais, prejudicando, não apenas a concretização dos seus sonhos, como a realização dos seus mínimos anseios.

- Acabou. Parei de vez. Não dá mais! - decidiu, profundamente angustiado, naquela véspera de Natal.

A sós, no escritório à meia-luz, relembrou toda a sua vida, marcada sempre pela presença do pai, que o sufocava com suas ordens, com sua autoridade excessiva, com sua constante vigilância e com aquela pôse permanente de dono de tudo e senhor absoluto de todas as verdades.

Levantou-se lentamente, foi ao banheiro, abriu a torneira e lavou o rosto várias vezes, como se quisesse afastar os fantasmas daquele começo de noite. Acendeu a luz e se olhou no espelho, fitando-se demoradamente, dando a impressão de não acreditar no que via.

- Trinta e cinco anos - balbuciou. E quem sou eu ? Que fiz por mim mesmo ? Que atitudes, independentemente do meu pai, tomei ? O que construi com minhas próprias mãos, por decisão da minha vontade?

Suspirou fundo, expressando todo o seu desânimo, antes de responder a si mesmo.

- Nada. Absolutamente nada.

Voltou à sua mesa, sentou-se diante do computador e, ainda no monitor, leu, mais uma vez, a carta de demissão, que levou a tarde inteira para escrever.

- É a minha carta de alforria.

Nem pensou mais e passou a imprimi-la. Após a impressão, colocou-a em um envelope, já devidamente endereçado ao Diretor-Presidente da empresa, seu pai.

- Não posso voltar atrás.

Fim do expediente. Só o pessoal da limpeza e alguns funcionários retardatários ainda ocupavam algumas salas daquele vigésimo andar, onde funcionava o cérebro da construtora SPM, uma das maiores da América Latina. A passos firmes, caminhou em direção à sala da Presidência e já sabia que lá iria encontrar dona Sônia, a secretária, e o seu pai - o Presidente -, sempre o último a sair, para servir de exemplo, como o comandante que só abandona o barco no derradeiro instante.

- Boa noite, dona Sônia - disse e foi passando pela ampla ante-sala, sem mais ninguém àquela altura.

- Boa noite, dr. Sérgio - respondeu dona Sônia, forçando um sorriso. O Presidente o espera.

Mal abriu a porta e o pai, por trás de uma enorme mesa de carvalho, iluminado apenas por um refletor, ainda examinando e assinando documentos, foi logo ordenando:

- Sente-se aí.

Em outras oportunidades, desde que começara a trabalhar na empresa, após receber o diploma de engenheiro, há dez anos, estaria tremendo de medo, sem saber como expor suas idéias e defendê-las. Só que agora seria diferente. Tomára uma decisão e nada o faria voltar atrás. Pacientemente, aguardou que o todo-poderoso Sérgio Pontes Macedo, ou simplesmente S.P.M., como sempre era tratado no mundo dos negócios - como uma sigla -, concluisse o que estava fazendo, para, então, dar, ao filho, a atenção necessária. Finalmente, chamou, pelo interfone, a secretária, ordenou que guardasse os papéis e, virando-se para Sérgio, perguntou:

- Que assunto tão sério e tão urgente é esse, que o fez marcar uma audiência formal ?

- Este é o assunto - respondeu, entregando ao pai o envelope com a carta.

Durante alguns minutos, sem nenhuma reação aparente, S. P. M. ficou de olhos fixos no papel, como se estivesse lendo e relendo o que ali estava escrito.

- Você deve estar louco - concluiu, pondo-se de pé. A audiência está encerrada. Volte ao trabalho.

- O pedido de demissão foi feito em caráter irrevogável. Ao retirar-me da sala, sairei da empresa e da sua casa - disse o engenheiro, procurando manter a calma.

- Isso... isso é uma insanidade. Que dirá a Delinha ? - perguntou o pai, bastante nervoso. E seus filhos... o que será deles? Seu salário não é grande coisa... Como vai viver?

- Já conversei com Adélia. Sua nora concorda comigo. Seus netos também. Iremos morar no meu apartamento - acrescentou o filho, tentando encerrar o diálogo.

- Espere - falou o pai, como se quisesse contemporizar. A culpa pode ter sido minha. Devo ter negligenciado com relação à sua situação financeira na empresa. Posso melhorar seus vencimentos... dar-lhe um cargo melhor. Providenciarei isso agora mesmo - e, ao dizer essa última frase, voltou a sentar-se, já acionando o interfone.

- Não chame ninguém - pediu Sérgio, fazendo um gesto com a mão direita espalmada. Nenhuma dessas tolices de que falou tem nada a ver com a minha decisão.

- Nunca pensei que um filho pudesse ser tão ingrato com um pai. Esse seu gesto não tem explicação nenhuma !

- Tem todas as explicações do mundo.

- Explique-me, então.

- Claro que explicarei, desde que prometa não interromper.

- Prometo, sim. Mas explique.

Aparentando muita calma, de olhos fixos no pai, o filho começou a falar:

- Aos trinta e cinco anos, sou um homem que nunca conseguiu tomar uma decisão na vida. Nunca. Antes mesmo de nascer, já era você quem decidia por mim. “Se for menino, terá o meu nome !” E daí por diante, não parou mais. Era você quem decidia tudo: a escola, as roupas, o jeito de falar, os brinquedos, as namoradas, os amigos e, quando me fiz jovem, a carreira que deveria abraçar. Inteiramente fascinado pela medicina, tive que cursar engenharia, já que você precisava de um engenheiro para ficar ao seu lado e ajuda-lo a conduzir a construtora. Depois, novas decisões, sempre cumpridas ao pé da letra. Foi assim que me casei com a mulher que você determinou, participando de um casamento de interesses, que uniria duas famílias importantes, com os mesmos objetivos comerciais, fazendo surgir um império no ramo da construção civil. Ao nascer, meus dois filhos foram batizados, é claro - porque assim você decidiu -, um, com o seu nome, e o outro, é lógico, com o nome do meu sogro. O robô continuava desempenhando o seu papel, fazendo tudo o que o seu criador mandava. Até que houve um curto-circuito. Uma pane. E a máquina, descontrolada, resolveu não obedecer mais. Foi o que aconteceu. Espero que a explicação tenha sido convincente.

- Não foi - disse, sério e carrancudo, o pai.

- Não?

- Não - reforçou o velho.

- E posso saber por que ?

- Porque você esqueceu de um pequeno detalhe.

- Que detalhe?

- Mesmo que eu seja o déspota que descreveu... mesmo que tenha exagerado nas minhas ordens... mesmo que lhe tenha impedido de tomar decisões... mesmo assim... você ainda me deve algo que não pode pagar, a não ser com cega obediência e total submissão.

- E o que é que eu lhe devo de tão importante assim?

E foi colocando o dedo em riste a um palmo do rosto do filho, que o pai respondeu:

- Você me deve a vida !

Suspirando fundo, já prevendo o impacto que iria causar com suas palavras, o jovem Sérgio disse, pausadamente:

- Nem isso eu lhe devo.

- Isso você não tem como negar ! Fui eu que lhe dei a vida ! - gritou.

- É um engano, se pensa assim.

- Engano, como ? Você é meu filho ! Eu o fiz !

- Pode até ter feito, junto com a minha mãe, mas não me deu a vida !

- Como vai explicar um contrasenso desses?

- É fácil - disse o jovem, com voz mansa, procurando acalmar o pai. Você mesmo sabe que eu sou engenheiro por sua decisão, mas que a carreira dos meus sonhos sempre foi a medicina. Pois foi lendo livros médicos e científicos que fiquei em condições de lhe explicar o que se deu no instante do meu nascimento.

- E o que se deu ? - quis saber o pai, procurando conter a irritação.

De pé, como quem dá uma aula, o filho começou a falar:

- Onde estava eu, naquele dia em que fui fecundado - quando você foi ao orgasmo e inoculou, na minha mãe, cerca de 2 a 5 centímetros cúbicos de esperma ? Se cada centímetro contém de 100 a 200 milhões de espermatozóides, imagine como me sentia, dentro da minha pequenez, medindo aqueles ínfimos 2.7 milésimos de milímetro ! De repente, lá estava eu, juntamente com centenas de milhões de outros espermatozóides, procurando fugir, a todo custo, daquela inóspita área, meia ácida, da vagina, movimentando, desesperadamente, a minha cauda. Eu estava disputando a maior competição natatória do mundo, sem ajuda de ninguém para vencê-la. À uma velocidade média de 2 a 3 milímetros por segundo, nadamos até o colo do útero, transpomos o canal cervical, entramos no útero, seguimos firmes pelos líquidos da parede uterina até a entrada da trompa e passamos a atravessa-la quase toda, interceptando o óvulo, finalmente, no terço externo do conduto, na região ampular ! Para que você possa ter uma idéia da enrascada em que me meteu, o trajeto foi feito em pouco mais de uma hora, sendo equivalente ao esforço de um nadador que percorresse 1.800 metros por minuto (os melhores atletas não conseguiem nem fazer 200), numa extensão igual à travessia do Canal da Mancha. E o que é pior: de mergulho, já que os espermatozóides carregam consigo seu próprio oxigênio. E mais: contra a corrente, na maior parte do percurso ! Por fim, apenas algumas dezenas tiveram o privilégio de dar de cara com o óvulo, que é o gameta feminino. Durante algum tempo, ficamos em torno do óvulo, sendo que sòmente um conseguiria penetrar no protoplasma, que corresponde, por assim dizer, à clara do ovo da galinha, e atingir a gema, ou seja, o núcleo. Quando o núcleo é atingido, dá-se o alarma, e a membrana envolvente do óvulo, que está situada por baixo da zona pelúcida, torna-se impermeável à penetração de outros espermatozóides. Os que ficarem de fora morrerão ao cabo de algumas horas ! Nova luta. Nova corrida. É viver ou morrer. Desespero total. Empurra-empurra. Angústia. Esforço tremendo. E eis que eu - sòmente eu - tive a sorte imensa de atingir o objetivo ! Agora, sim - graças à realização de uma façanha inaudita -, eu estava ali, pronto para receber o prêmio a que fiz jús, sem ajuda de ninguém: a vida !

Parou de falar por um instante, encarou o pai com mais firmeza ainda, e concluiu:

- Como vê: eu fui buscar, sòzinho, na marra, a minha vida. Numa única e firme decisão tomada por mim mesmo. Antes de nascer.

O pai limitou-se a permanecer calado, como se nada tivesse a acrescentar ou a contestar.

Levantando-se, o filho caminhou até a porta, onde parou para dizer:

- Você continua sendo meu pai.

E afastando-se:

- Mas não é o meu dono.

Passou pela ante-sala, cumprimentou dona Sônia com um gesto, e foi embora.

Liberto para sempre.

Livre para viver.

Pronto para voar.

Com suas próprias asas.

Como um passarinho.

Sem depender de mais ninguém para forjar seu próprio destino.

Sem jamais deixar, é claro, de amar e respeitar o seu pai.

Um comentário:

  1. Muito bom, cara. Me identifiquei muito com o texto se eu o tevesse feito, com certeza seria mais por expeirencia própria do que por ficção.Fez valer a pena te seguir no twitter ^^

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