As faces de Eva
Jamais pensara em estar ali, naquele pátio da penitenciária do Estado, sentado na calçada, tomando o seu banho de sol, tranquilamente, sem revoltar-se contra Deus e o mundo. Na verdade, perdera, ali dentro, na solidão de uma cela, aqueles que poderiam ter sido os melhores anos da sua vida, apesar da absoluta falta de perspectiva para o futuro naquela peque na cidade do interior, onde nascera e passara toda a sua juventude. Foi por insistência dos pais, simples agricultores, semi-alfabetizados, mas que sabiam reconhecer a importância do estudo para toda e qualquer pessoa, que tivera que suportar o sacrifício de frequentar uma escola, à noite, após passar o dia inteiro na roça, de enxada na mão, plantando e colhendo, dando um duro danado para garantir o sustento de todos, já que era filho único. De uma maneira ou de outra, mesmo sem ter nenhum horizonte à sua frente, era um su-jeito conhecido na pequena cidade de Araçá. Quem, naquelas redondezas, não conhecia o Beto do Chico Feijão ? Era o Beto... o Betinho... presente em todas as feiras, puxando uma fileira de jegues, com os caçoás repletos de milho e feijão, que sempre eram vendidos à uma freguesia certa. O seu futuro não era dos mais promissores. Mas havia futuro. E depois da loucura que fez ? Apaixonou-se pela Be-linha e deu no que deu.
Quando foi apresentado à moça, a coisa se passou da maneira mais simples:
- Betinho...
- Pode dizer, mãe.
- Essa é a Anabela.. filha do nosso vizinho... o que comprou o sítio do compadre Jorge.
- Prazer...
- Pode me chamar de Belinha - disse a moça, com um sorriso brejeiro nos lábios e com um brilho intenso nos belos olhos verdes.
Só que, a partir daí, o Betinho não conseguiu mais tirar a Belinha da sua cabeça. A todo momento, pensava naqueles olhos, no sorriso, nos seus longos cabelos negros, na beleza do seu rosto e no seu corpo perfeito. Bela ! - tinha de ser o seu nome - dizia consigo mesmo. E ali estava ela, na imponência dos seus dezoito anos, deslumbrante na sua meiguice, despertando sonhos no coração do jovem.
Com Belinha, vivera uma paixão sem limites, dessas que chegam com a força de uma tempestade e nos deixam expostos à chuvas e trovoadas. Todos os homens das redonde-
zas estavam de olho nela e, embora aparentasse estar protegida pelo manto da inocência e da pu reza, ela jamais deixou de incentivar qualquer um que a desejasse. Eram brigas sem conta em que Betinho se metera por causa de ciúmes. Até o dia em que ele encontrou os dois - a Belinha e o Reginaldo, filho de um dos mais ricos fazendeiros da região -, inteiramente despidos, tomando banho no Rio das Cobras. Avisado por um amigo, foi o local e assistiu toda a cena, desde quando sairam da água, alegres e sorri-dentes, até o momento em que rolaram na grama, aos beijos e abraços, e logo passaram a se amar, num ritmo frenético e quase alucinante.
- Miserável ! - rosnou, furioso com o que via, o Betinho. Ele desvirginou a minha Belinha !
Sem dizer mais nenhuma palavra, aproximou-se rapidamente, segurou o Reginaldo pelos cabelos e, de faca-peixeira na mão, desferiu o primeiro golpe no tórax, abaixo da garganta; o segundo, bem em cima do coração, e os demais - que nada mais significavam - no baixo ventre e em outras regiões do corpo. Inteiramente nua, de pé, sem esboçar qualquer reação, Belinha a tudo assistiu, até o instante em que alguns homens da fazenda, devidamente armados, encarregados da segurança do Reginaldo, e que se encontravam um pouco afastados dali, cercaram o Betinho, tomaram-lhe a faca e o conduziram para a delegacia. Se não fosse a providência do delegado de recambia-lo imediatamente para um presídio da capital, teria sido morto, com certeza, a mando do fazendeiro, tal era o poder que o pai da vítima exercia em Araçá e nas cidades vizinhas. Prestígio, certamente, que se fez sentir até mesmo no julgamento, quando Betinho foi condenado a mais de vinte anos de cadeia. E ele ali está, tomando o seu banho de sol semanal, exatamente como tem feito nos últimos dezoito anos. Sem o amor de Belinha - já que nunca soube que fim ela levara - e, o que é pior, sem direito à vida.
Estava assim, imerso em recordações, quando um outro prisioneiro, alto e forte, louro, de olhos azuis, aproximou-se:
- Soube da sua história por um dos detentos - disse.
- É... muitos sabem do que houve comigo...
- Uma mulher bonita... ciúmes... e a desgraça se fez.
- É isso. Tive que matar o infeliz...
- Foi o mesmo que se deu comigo.
- Uma mulher...
- Morena... linda... terna... por quem me apaixonei. E nem havia razão para tanto. Sabe onde fui encontra-la ? Numa favela. Como advogado, meu ambiente era outro. Casado e bem casado, não tinha como me meter com esse tipo de mulher, principalmente por saber que tinha sido o pivô de um crime.
- Você sabia...
- Claro que sabia. Eu estava em casa, quando um dos meus empregados, que trabalhava, como zelador, no meu escritório, procurou-me. Estava nervoso e assustado. Havia cometido um assassinato. Vivia, há dois anos, com uma mulher, chamada Florinda, ou simplesmente Flor, como à ela se referia ao contar a história. Naquela noite, ao retornar ao barraco, na favela, encontrou-a nos braços de outro homem. Não hesitou um só segundo. Puxou o revólver e disparou três tiros no desgraçado, que já caiu morto no chão. Como louco, fugira da favela e ali estava, em minha casa, pronto pra se mandar pelo mundo, mas exigindo, de mim, uma promessa.
- Que tipo de promessa ?
- Queria que eu livrasse a Flor de qualquer problema e que a protegesse, pois ainda a ama- va. Fiz o que me pediu e cometi o maior erro da minha vida. Ao ver a mulher pela primeira vez, entendi, de imediato, porque a chamavam de Flor. Era o que ela era. Uma flor. Uma morena des lumbrante. Sedutora. Meiga. Terna. Pura. Um verdadeiro encanto, se é que apenas isso poderia defini-la. Foi pura paixão ao primeiro olhar. Linda e sensual nos seus trinta e poucos anos, Flor não apenas livrou-se da justiça, como passou a viver comigo numa casa, após o meu casamento estar desfeito. Vivemos cerca de um ano na mais plena felicidade. Como desejasse estudar, contratei os melhores professores para ensina-la. E foi com um deles - o de matemática - que a en- encontrei aos beijos e afagos, em nosso quarto, numa noite em que ela julgou que estivesse viajando. Não pensei mais nada: apenas saquei o revólver e atirei nos dois. Ele morreu na hora, mas ela conseguiu escapar com vida. Quando a polícia chegou, eu ainda estava lá, abalado, sentado na cama. Fui preso, julgado e condenado e há dois anos estou aqui.
- Só muda o lugar, mas as histórias são as mesmas.
- É verdade...
- Eu me tornei criminoso num sítio... seu empregado, num barraco de favela... e você, numa casa da cidade grande.
- E o seu caso, como foi ?
Enquanto o Betinho contava o drama que vivera há dezoito anos e pelo qual estava pagando até hoje, um outro detento, gordo e careca, usando óculos de grau, que estava ali perto, acercou-se um pouco mais dos dois. Ao término da história do Betinho, o advogado - que agora já se identificara como Carlos - tirou as suas conclusões:
- Veja bem: o homem da roça... o zelador da cidade... e o advogado, que se formou para respeitar as leis... todos tiveram reações idênticas e mataram por causa de uma mulher !
- Belíssima conclusão ! - disse o outro detento, que já estava bem próximo e atento ao fi-
nal da história do Betinho.
- O senhor é... - quis saber Carlos, interessando-se na curiosa e volumosa figura.
- João Gualberto de Pereira Lopes. JG no mundo empresarial. Aqui, nesse nosso mundo, trate-me pelo apelido que ficar melhor. Que tal João Careca, João Gorducho ou qualquer coisa assim ?
- O senhor já deve ter algo em torno dos setenta. Mesmo aqui, o respeito aos mais ido- sos ainda é uma norma - disse o advogado.
- Que mal pergunte, doutor, como é que o senhor - que parece ser um homem de posses - está fazendo aqui nesta prisão ?
- Tá valendo a pergunta do Betinho. Eu o reconheço agora. Já vi suas fotos nos jornais. O senhor é o dono das indústrias JG, uma das maiores do Estado. Como foi que um homem com o seu prestígio veio parar aqui ? Que crime cometeu ? - perguntou Carlos.
- Matei o meu sócio - respondeu o industrial. Matei-o com essas mãos. Estrangulei-o. E faria tudo de novo.
- Que fez ele ? Roubou parte da sua fortuna ? - interessou-se em saber o Betinho.
- Parte ? Ele roubou toda a minha fortuna !
- Toda ?
- É... ele roubou de mim a única mulher que amei na vida... meu maior tesouro... minha ver dadeira fortuna !
- Ah, uma mulher... - entendeu, enfim, o advogado.
- Ela era a coisa mais linda do mundo. Meiga e doce. Terna e carinhosa. Durante alguns meses de vida em comum, fui, sem dúvida, o homem mais feliz da terra ! Nem com a minha falecida tinha vivido momentos de tanta felicidade !
- O senhor era viúvo e voltou a casar-se... - aprofundou-se o Betinho.
- Um casamento inesperado, mas com toda a pompa necessária, com a presença da mais alta sociedade. Fiz questão de marcar, com uma grande festa, aquele dia que iria assinalar o meu reencontro com a alegria de viver. Ela poderia ter no máximo quarenta anos e aparentava, com sua beleza, ser muito mais jovem, mas a diferença de idade, contudo, não importava. Eu estava renascendo para a vida e Rosa, que já frequentava os ambientes sociais e sonhava com vôos mais altos, estava pronta a me oferecer o paraíso em troca de luxo e dinheiro. E Rosa me fez feliz por algum tempo. Até que o dia fui informado que ela estava me traindo com o meu sócio. Fui à uma casa de campo onde se encontravam. E os flagrei. Os dois ali estavam, despidos, deitados na cama. Furioso, deitei-me sobre ele e, com minhas mãos crispadas, apertei o seu pescoço até sentir que deixara de respirar.
Por um instante, arfando, o empresário parou de falar, baixou a cabeça e começou a soluçar.
- Na verdade, estamos os três aqui por um mesmo motivo: matamos por amor - concluiu Carlos. E querem conhecer a causa da minha desgraça ?
Retirou do bolso e, olhando-a com carinho, disse:
- Eis a mulher por quem matei.
Os três homens olharam a foto e disseram, quase a uma só voz:
- Belinha ! - exclamou Betinho.
- Rosa ! - gritou o empresário.
- Mas essa é a Flor ! - asseverou o advogado.
E os três, sem querer acreditar no que viam, ficaram ali, por algum tempo no mais completo silêncio.