A julgar pela cara da velha, que
parecia exibir uma ruga para cada um dos seus setenta anos, feia que só a fome,
mostrando-se, naquela hora, mais demoníaca ainda, ninguém - absolutamente
ninguém - tinha o direito de duvidar das suas palavras.
Só que não havia uma única pessoa
que desse o menor crédito às histórias da rezadeira.
- Rezadeira é assim mesmo -
gracejava Osmundo, capataz da fazenda Girassol - vê assombração em tudo no
mundo.
- Essa invenção de cachorro
peludo, meio-homem-meio-bicho, de lobisomem - afirmava o vaqueiro Pedrão,
entrando na conversa - é coisa mesmo de dona Zefinha. Ela jura e bate o pé que
a coisa existe. A pobre deve tá é
caduca.
- O que é que o senhor acha,
coronel Honório ? - quis saber o Osmundo, justo da figura mais importante
daquela roda que se formara no alpendre da casa grande, como se desejasse botar
um ponto final na conversa.
Coronel Honório Passos. Ele mesmo,
em carne e osso. Um símbolo de coragem da região. Barba, cabelos e sobrancelhas
brancas a emoldurar o rosto queimado do sol, iluminado pela luz de dois
inflexíveis olhos negros. Deitado na rede, com um riso estranho no canto
direito da boca, demorou-se para responder a pergunta. Antes, deu uma baforada
no charuto e, expelindo fumaça pelas narinas, como um dragão, dirigiu-se à
platéia, formada por vaqueiros e
moradores da fazenda:
- Só o tempo nos ensina a não
duvidar de nada nesta vida. Quando era moço, cansei de mandar velhas, como dona
Zefinha, cantar em outra freguesia. A juventude é o império da incredulidade.
Pra mim, todas essas histórias fantasiosas eram feitas para enganar os trouxas.
Hoje, já beirando os oitenta, depois de tudo o que
vi nesse bocado de anos vividos, não
duvido de mais nada. A palavra da rezadeira fica valendo enquanto não chegar a
hora. Ela disse que o bicho vai aparecer quando ? - perguntou, virando-se para
o capataz.
- Domingo. Na noite de domingo.
Com a lua cheia no céu.
- Pois vamos aguardar - decidiu o
coronel. Só faltam dois dias. Se nada
acontecer, eu mesmo mando internar a velha num hospício !
No domingo marcado - dona Zefinha
bem que avisára - apareceu uma lua cheia enorme no céu, dentro de um circulo
avermelhado, no exato momento em que um vento frio e cortante começou a descer
a serra, prendendo as pessoas em suas casas e fazendo acabar mais cedo a mais
agradável das reuniões da semana: a domingueira. Naquela noite, o alpendre estava
vazio. A ventania ficou mais forte e começou a arremessar, de um lado para
outro, as redes armadas, levantando poeira em frente da casa. Impassível,
parecendo não sentir os grãos de areia que lhe batiam no rosto, o coronel
estava de pé, à porta, observando, com bastante apreensão, o enorme disco lunar
brilhando nas alturas.
- A lua do cachorro doido -
balbuciou
Minutos depois, estava sentado em
uma poltrona, na sala, quando o Osmundo entrou de sopetão, esbaforido e
nervoso.
- Coronel... o senhor tem que ver
... no curral ! - foi dizendo e apontando para um determinado lugar, lá fora.
- O que houve no curral ? -
perguntou o coronel, levantando-se.
- O senhor precisa ver para crer ! -
insistiu o capataz.
- Pois vamos até lá.
No curral já se encontrava uma meia
dúzia de vaqueiros e diversos moradores, em volta de alguma coisa.
- Saiam dai.... se afastem ! -
ordenou Osmundo, conduzindo um lampião acêso. Deixem o coronel passar !
Sem acreditar no que via, o coronel
ajoelhou-se para olhar de perto a desgraceira: três reses - um garrote e duas
novilhas - estavam ali, no chão, esvaindo-se em sangue - duas delas já mortas-,
como se tivessem sido estraçalhadas por algum animal.
- Lobo... onça.. .nenhum bicho é
capaz de fazer um estrago desses, coronel ! - afirmou Genaro, o mais velho e
experiente dos vaqueiros.
- Ninguém viu nem ouviu
nada ?
- A gente ouviu, coronel - asseverou
o velho. Eu mesmo ouvi o gado mugindo. Mas pensei que era por causa ventania...
da lua cheia...
- Jorge - dirigiu-se o fazendeiro a
um dos vaqueiros -, tu anda ligeiro. Pega o cavalo e vai à cidade. Traz o
doutor Bento, o veterinário. E diz
também ao delegado que venha pra cá... correndo !
Aproveitando o jipe do sargento
Serrano, delegado do município, o doutor Bento pegou uma carona, ladeado por
dois soldados, armados com revólveres e fuzis. Ao chegar, foram diretos para o
curral, onde vários lampiões à gás iluminavam, agora, o local, enquanto o
coronel Honório ouvia as histórias daquela gente, envolvendo a presença de
homens-lobo nas redondezas.
- Mandou chamar, coronel ? -
apressou-se em perguntar o sargento.
- Olha pra isso aqui, delegado -
disse o fazendeiro, apontando.
Estarrecido, o delegado ficou
olhando, de pé, aquela carnificina toda, enquanto o veterinário,
abaixado, de cócoras, começava a examinar as reses mortas.
- Quem danado terá feito isso ? -
indagou o delegado, sem acreditar no que via.
- A pergunta está correta, sargento
- disse o coronel, franzindo o cênho, e alisando, com a mão direita, o vasto
bigode. Quem fez isso ? O quê está por trás disso ?
- Outro animal não foi - garantiu o
veterinário. Não existe por aqui nenhum bicho capaz de dar essas mordidas. Nem
uma onça das grandes. Nada.
- Quer dizer que você não sabe do
que trata ?
- Sei não, coronel. Seja o que for,
deve ser muito grande, de boca enorme e excessivamente violento. Nunca vi nada
igual.
Dirigindo-se ao delegado e a todos
que estavam em sua volta, o coronel Honório exclamou:
- Bicho nenhum jamais me causou
medo. E não vai ser esse ai, comendo o meu gado, o primeiro a me fazer tremer
as pernas. Que estamos esperando ? A polícia está aqui... temos lampiões para
iluminar a mata... armas à vontade... e um bando de cabra macho ! Vamos sair
atrás dessa coisa agora mesmo ! Seja o que diabo for, vai pagar bem caro pelo
que fez !
Logo, cinco grupos de três homens
entraram na mata, caminhando em direções diferentes. Num deles, o delegado, o
doutor Bento e o coronel passaram a seguir rastros de sangue, visíveis, aqui e
acolá, ao longo de um caminho que se enroscava pela mata a dentro.
- O bicho deve ter sido atingido
pelo Gigante, que estava com os chifres cobertos de sangue - procurou explicar
o coronel.
- É posssível - concordou o doutor
Bento. Aquele touro é bastante feroz. Eu
o conheço bem. Ninguém - seja homem ou bicho - entra naquele curral com ele
solto !
A última marca de sangue estava à
entrada de um casebre quase em ruinas, onde morava sozinho, há anos, numa miséria de fazer dó, o
Chico Pulguento - um maluco que aparecia, de vez em quando, na cidade, pedindo comida a um e a outro. O apelido veio
do fato de nunca ter cortado o cabelo nem a barba, que praticamente lhe cobriam
o rosto, dando-lhe uma imagem grotesca, meio homem, meio animal.
- É a casa do Chico - disse o
coronel.
- Chico ! - gritou o delegado. Quero
falar com você !
O sargento, ao ter o silêncio como
resposta, aguardou um pouco, olhou pro coronel e, rifle engatilhado, decidiu:
- Vamos entrar.
Lá dentro, deitado em cima de um
rôto colchão, jogado em um canto de parede, dentro de uma enorme poça de
sangue, estava Chico. Verificando de perto, à luz do lampião, o doutor Bento
concluiu:
- Está morto. Foi atingido, bem em
cima do coração, por vários golpes profundos de uma faca enorme, tipo
peixeira... ou de grandes chifres afiados !
Até
hoje, ninguém sabe explicar, ao
certo, o que aconteceu. Dez anos depois, muitas luas cheias se passaram, iguais
àquela. Só que nunca mais se ouviu falar em lobisomem. Até dona Zefinha, a
rezadeira, tuberculosa, veio a falecer, sem deixar saudade. Ao que parece, a
história só ficou na cabeça do coronel Honório que, mesmo velho e alquebrado,
ganhou uma nova mania: todos os anos, na
sétima lua cheia, quando um vento forte volta a descer da serra, ele costuma
ficar no alpendre, à espera de algo que não mais virá. Não fala, mas pensa:
- A lua do cachorro doido.
E balbucia:
- Que a alma do Chico descanse em
paz.