terça-feira, 4 de outubro de 2011

O CONTO DO MÊS - outubro





    A lua do cachorro doido  

     Dona Zefinha bem que prevenira: na sétima lua  cheia  do  ano costuma acontecer coisas que até Deus duvida.

              - E quando a lua aparece arrodeada por um clarão encarnado, da cor de fogo, e um vento gelado desce da serra, o mundo vira de cabeça para baixo: é a lua do cachorro do doido !
              A julgar pela cara da velha, que parecia exibir uma ruga para cada um dos seus setenta anos, feia que só a fome, mostrando-se, naquela hora, mais demoníaca ainda, ninguém - absolutamente ninguém - tinha o direito de duvidar das suas palavras.
              Só que não havia uma única pessoa que desse o menor crédito às histórias da rezadeira.
              - Rezadeira é assim mesmo - gracejava Osmundo, capataz da fazenda Girassol - vê assombração em tudo no mundo.
              - Essa invenção de cachorro peludo, meio-homem-meio-bicho, de lobisomem - afirmava o vaqueiro Pedrão, entrando na conversa - é coisa mesmo de dona Zefinha. Ela jura e bate o pé que a coisa existe. A pobre deve tá  é caduca.
              - O que é que o senhor acha, coronel Honório ? - quis saber o Osmundo, justo da figura mais importante daquela roda que se formara no alpendre da casa grande, como se desejasse botar um ponto final na conversa.
              Coronel Honório Passos. Ele mesmo, em carne e osso. Um símbolo de coragem da região. Barba, cabelos e sobrancelhas brancas a emoldurar o rosto queimado do sol, iluminado pela luz de dois inflexíveis olhos negros. Deitado na rede, com um riso estranho no canto direito da boca, demorou-se para responder a pergunta. Antes, deu uma baforada no charuto e, expelindo fumaça pelas narinas, como um dragão, dirigiu-se à platéia,  formada por vaqueiros e moradores da fazenda:
              - Só o tempo nos ensina a não duvidar de nada nesta vida. Quando era moço, cansei de mandar velhas, como dona Zefinha, cantar em outra freguesia. A juventude é o império da incredulidade. Pra mim, todas essas histórias fantasiosas eram feitas para enganar os trouxas. Hoje, já beirando os oitenta, depois de tudo o que vi  nesse bocado de anos vividos, não duvido de mais nada. A palavra da rezadeira fica valendo enquanto não chegar a hora. Ela disse que o bicho vai aparecer quando ? - perguntou, virando-se para o capataz.
              - Domingo. Na noite de domingo. Com a lua cheia no céu.
              - Pois vamos aguardar - decidiu o coronel.  Só faltam dois dias. Se nada acontecer, eu mesmo mando internar a velha num hospício !
              No domingo marcado - dona Zefinha bem que avisára - apareceu uma lua cheia enorme no céu, dentro de um circulo avermelhado, no exato momento em que um vento frio e cortante começou a descer a serra, prendendo as pessoas em suas casas e fazendo acabar mais cedo a mais agradável das reuniões da semana: a domingueira. Naquela noite, o alpendre estava vazio. A ventania ficou mais forte e começou a arremessar, de um lado para outro, as redes armadas, levantando poeira em frente da casa. Impassível, parecendo não sentir os grãos de areia que lhe batiam no rosto, o coronel estava de pé, à porta, observando, com bastante apreensão, o enorme disco lunar brilhando nas alturas.
              - A lua do cachorro doido - balbuciou
              Minutos depois, estava sentado em uma poltrona, na sala, quando o Osmundo entrou de sopetão, esbaforido e nervoso.
              - Coronel... o senhor tem que ver ... no curral ! - foi dizendo e apontando para um determinado lugar, lá fora.
            - O que houve no curral ? - perguntou o coronel, levantando-se.
            - O senhor precisa ver para crer ! - insistiu o capataz.
            - Pois vamos até lá.
            No curral já se encontrava uma meia dúzia de vaqueiros e diversos moradores, em volta de alguma coisa.
            - Saiam dai.... se afastem ! - ordenou Osmundo, conduzindo um lampião acêso. Deixem o coronel passar !
            Sem acreditar no que via, o coronel ajoelhou-se para olhar de perto a desgraceira: três reses - um garrote e duas novilhas - estavam ali, no chão, esvaindo-se em sangue - duas delas já mortas-, como se tivessem sido estraçalhadas por algum animal.
            - Lobo... onça.. .nenhum bicho é capaz de fazer um estrago desses, coronel ! - afirmou Genaro, o mais velho e experiente dos vaqueiros.
            - Ninguém viu  nem ouviu  nada ?
            - A gente ouviu, coronel - asseverou o velho. Eu mesmo ouvi o gado mugindo. Mas pensei que era por causa ventania... da lua cheia...
            - Jorge - dirigiu-se o fazendeiro a um dos vaqueiros -, tu anda ligeiro. Pega o cavalo e vai à cidade. Traz o doutor  Bento, o veterinário. E diz também ao delegado que venha pra cá... correndo !
            Aproveitando o jipe do sargento Serrano, delegado do município, o doutor Bento pegou uma carona, ladeado por dois soldados, armados com revólveres e fuzis. Ao chegar, foram diretos para o curral, onde vários lampiões à gás iluminavam, agora, o local, enquanto o coronel Honório ouvia as histórias daquela gente, envolvendo a presença de homens-lobo nas redondezas.
            - Mandou chamar, coronel ? - apressou-se em perguntar o sargento.
            - Olha pra isso aqui, delegado - disse o fazendeiro, apontando.
            Estarrecido, o delegado ficou olhando, de pé, aquela carnificina toda, enquanto o veterinário, abaixado, de cócoras, começava a examinar as reses mortas.
            - Quem danado terá feito isso ? - indagou o delegado, sem acreditar no que via.
            - A pergunta está correta, sargento - disse o coronel, franzindo o cênho, e alisando, com a mão direita, o vasto bigode. Quem fez isso ? O quê está por trás disso ?
            - Outro animal não foi - garantiu o veterinário. Não existe por aqui nenhum bicho capaz de dar essas mordidas. Nem uma onça das grandes. Nada.
            - Quer dizer que você não sabe do que trata ?
            - Sei não, coronel. Seja o que for, deve ser muito grande, de boca enorme e excessivamente violento. Nunca vi nada igual.
            Dirigindo-se ao delegado e a todos que estavam em sua volta, o coronel Honório exclamou:
            - Bicho nenhum jamais me causou medo. E não vai ser esse ai, comendo o meu gado, o primeiro a me fazer tremer as pernas. Que estamos esperando ? A polícia está aqui... temos lampiões para iluminar a mata... armas à vontade... e um bando de cabra macho ! Vamos sair atrás dessa coisa agora mesmo ! Seja o que diabo for, vai pagar bem caro pelo que fez !
            Logo, cinco grupos de três homens entraram na mata, caminhando em direções diferentes. Num deles, o delegado, o doutor Bento e o coronel passaram a seguir rastros de sangue, visíveis, aqui e acolá, ao longo de um caminho que se enroscava pela mata a dentro.
            - O bicho deve ter sido atingido pelo Gigante, que estava com os chifres cobertos de sangue - procurou explicar o coronel.
            - É posssível - concordou o doutor Bento. Aquele touro é bastante feroz.  Eu o conheço bem. Ninguém - seja homem ou bicho - entra naquele curral com ele solto !
            A última marca de sangue estava à entrada de um casebre quase em ruinas, onde morava  sozinho, há anos, numa miséria de fazer dó, o Chico Pulguento - um maluco que aparecia, de vez  em quando, na cidade,  pedindo comida a um e a outro. O apelido veio do fato de nunca ter cortado o cabelo nem a barba, que praticamente lhe cobriam o rosto, dando-lhe uma imagem grotesca, meio homem, meio animal.
            - É a casa do Chico - disse o coronel.
            - Chico ! - gritou o delegado. Quero falar com você !
            O sargento, ao ter o silêncio como resposta, aguardou um pouco, olhou pro coronel e, rifle engatilhado, decidiu:
            - Vamos entrar.
            Lá dentro, deitado em cima de um rôto colchão, jogado em um canto de parede, dentro de uma enorme poça de sangue, estava Chico. Verificando de perto, à luz do lampião, o doutor Bento concluiu:
            - Está morto. Foi atingido, bem em cima do coração, por vários golpes profundos de uma faca enorme, tipo peixeira... ou de grandes chifres afiados !
            Até  hoje,  ninguém sabe explicar, ao certo, o que aconteceu. Dez anos depois, muitas luas cheias se passaram, iguais àquela. Só que nunca mais se ouviu falar em lobisomem. Até dona Zefinha, a rezadeira, tuberculosa, veio a falecer, sem deixar saudade. Ao que parece, a história só ficou na cabeça do coronel Honório que, mesmo velho e alquebrado, ganhou uma nova mania: todos os anos,  na sétima lua cheia, quando um vento forte volta a descer da serra, ele costuma ficar no alpendre, à espera de algo que não mais virá. Não fala, mas pensa:
            - A lua do cachorro doido.
            E balbucia:
            - Que a alma do Chico descanse em paz.




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