terça-feira, 24 de agosto de 2010

O CONTO DO MÊS - AGOSTO





A NOITE DO FIM DO MUNDO

São José da Serra Buchuda. Na lembrança do santo, o nome o fundador da cidade, um Zé qualquer, dono de um sítio, com bastante tino comercial, que lá instalou uma bodega pra atender aos roceiros das redondezas e diverti-los, com duas sinucas e mesas de carteado. Até hoje - trinta anos depois - ainda se fala no cassino do Zé da Bodega, que depois se transformou num bordel, cheio de rapariguinhas novas, sob o comando da sua viúva, a mulata Idalina, que deixou, depois de velha e alquebrada, o negócio pras filhas, que ainda vivem do cabaré, agora conhecido como Night & Day. E a Serra Buchuda ? É só olhar, da rua principal da cidade, o imenso serrotão ao longe, sob a forma de uma barriga de mulher grávida, com umbigo saliente e tudo o mais. A partir daí, foi fácil: o sítio do Zé se transformou em São José da Serra Buchuda, como é conhecida, hoje, a cidadezinha de mil e poucos habitantes, encravada nos socavões dos sertões nordestinos.

Os buchudenses - como eles próprios gostam de ser chamados - sempre viveram aquela vidinha típica do interior esquecido, onde os dias e as noites se sucedem numa monotonia irritante, sem que nada de novo aconteça, e as notícias do mundo exterior só chegam através do rádio e da TV, graças à meia dúzia de antenas parabólicas, que servem ao prefeito, ao juiz e a alguns proprietários de terra das cercanias. Acessada apenas por duas estradas vicinais, sempre mal conservadas, poucos são os veículos que se aventuram a percorrer os duzentos e tantos quilômetros que a separam de uma cidade mais em conta. Um único posto telefônico a serve com dificuldade. Fadados ao isolamento, vivendo da agricultura de subsistência, seus habitantes se acomodaram e aceitaram aquela rotina como parte integrante de suas vidas.

Guardadas as devidas proporções, tanto em Nova York como em São José da Serra Buchuda, os acontecimentos inerentes ao ser humano, nascidos dos sentimentos que norteiam a nossa existência, são perfeitamente idênticos, com reações diferenciadas apenas pelo grau de entendimento oferecido por visões, nem sempre iguais, de um mesmo prisma.

- O mundo vai se acabar, prefeito ! - foi dizendo, bastante assustado, o delegado Valdevino, entrando, de sopetão, na sala do doutor Vinagre.

- Que história é essa, Valdevino ? - quis saber o prefeito.

- Boi Preto falou.

- Ele falou ?

- Falou. Um bocado de gente foi lá e ele falou. Disse tudo.

- Tudo o que ?

- Tudo. O que vai acontecer. Os sinais. O dia. A hora. Tudo !

- E eu não lhe pedi que ameaçasse o preto velho pra que não dissesse besteira e endoidecesse o povo ?

- E eu ameaçei, prefeito. Fui lá e pedi que parasse com essa história de andar dizendo que o mundo vai se acabar. Disse a ele que o senhor o mandaria prender !

- E ele ?

- Calado estava, calado ficou. E o resultado taí.

- Vamos ao Bar do Ôsso.

Quando ocorria um problema sério na cidade, envolvendo a população, as mulheres corriam pra igreja e os homens pro Bar do Ôsso, uma espécie de centro de fofocas e tribunal de inquisição local. Ali, as pessoas eram taxadas disso ou daquilo, e não tinham como fugir do que fora determinado. Se era corno, era corno. Se era viado, era viado. E não adiantava estribuchar.

- E agora, prefeito ? - foi logo perguntando o Chico Alambique, único vereador da oposição e ferrenho inimigo do doutor Vinagre. Enquanto o senhor só pensa na sua reeleição, o mundo tá se acabando !

- Se você parasse de beber, Chico, podia até entender que isso é uma maluquice e que o mundo não vai se acabar coisa nenhuma ! - disse o prefeito.

- Se eu fosse você - entrou na conversa o Zé Gordo, o dono do bar - não duvidaria, antes de ouvir a história.

- Que história ?

- A história de quem foi até lá e ouviu o Boi Preto falar.

Juntaram-se todos - Chico do PT, o Gordo, o Zeferino Carteiro, Onofre da Bodega, Tião Dentista - o Alicate -, Zé da Oficina, João da Padaria, Manuel da Gasolina, e muitos outros, figuras conhecidíssimas na cidade, e puseram-se a contar a história, cada um acrescentando suas observações.

- O Boi Preto ficou em silêncio, garantindo que só voltaria a falar, quando o anjo lhe aparecesse de novo, conforme prometêra, para anunciar o fim do mundo - observou Zeferino. Por mais que a gente forçasse, ele nunca mais pronunciou uma só palavra. Até hoje. De tardezinha, mandou chamar todo mundo. Com muito esforço, fomos até lá. Caminhamos mais de uma légua, subimos a Serra Buchuda e entramos na gruta, onde sempre viveu. Lá dentro, iluminado por algumas velas acesas pelos crentes, o Preto Velho, passando as mãos enrugadas nos cabelos brancos, assim falou: “O anjo apareceu e disse: Como prometí, estou de volta. É a minha última visita. Vim dizer ao Boi Preto que o mundo vai se acabar. Na noite deste sábado, um terrível temporal se abaterá sobre São José. Raios e trovões. Vento forte. As águas do Rio Sêco invadirão as terras baixas, inundando tudo. Muitas casas serão destruídas. A igreja cairá por terra. Todos morrerão. A não ser que estejam aqui, a meu lado, no alto da Serra Buchuda. Esses escaparão.”

O doutor Vinagre, ouviu tudo, pacientemente, e depois, com ar de deboche, virou-se para os que ali se encontravam e falou:

- Como é que vocês podem acreditar numa história dessas ? O Boi Preto tá com quase noventa anos... tá gagá... não sabe mais o que diz ! Imagine só ! Quanto tempo faz que não chove em São José ? Cinco anos, entrando pra seis ! Tem menino aqui que nunca viu um pingo de chu-

va ! E o rio Sêco - coitado ! - já tem esse nome porque há muito tempo que não corre água no seu leito ! E o preto velho tá dizendo que as águas do rio vão invadir e destruir tudo ! Tudo isso é um absurdo ! Nada vai acontecer ! Amanhã, o dia vai ser ensolarado como sempre e a noite terá uma enorme lua cheia num céu azul ! Vão dormir e esqueçam essa conversa de fim do mundo !

Muita gente caiu em si e acompanhou o prefeito, que deixou o recinto. Outros ficaram, no embalo daquela sexta-feira, enchendo a cara de cana pela noite a dentro.

Só que, no sábado, no começo da tarde, dezenas de pessoas, em romaria, seguiram a trilha da Serra Buchuda e se alojaram nas muitas cavernas que lá existem, conduzindo mantimentos e dispostas a permanecerem no local até o dia seguinte.

Por volta das seis horas da noite, um trovão se fez ouvir na distância, estremecendo tudo. E mais outro. E outro mais. Sequenciando os trovões, raios cortavam o céu escuro, iluminando a noite, enquanto um vento forte dobrava a copa das árvores, levantava nuvens de folhas secas e obrigava as pessoas a fecharem portas e janelas. Silenciosos e angustiados, os buchudenses observavam tudo aquilo, corações descompassados, lembrando as palavras do Boi Preto.

- É o fim do mundo ! - balbuciou o Zé Gordo, fechando o bar e correndo pra casa.

Enquanto a natureza, enfurecida, exibia a sua força e um aguaceiro nunca visto caía sobre a região, homens e mulheres, ante a iminência da tragédia, debruçaram-se sobre o pouco de vida que lhes restavam e abriram seus corações. Esposas tidas como fiéis confessaram seus casos amorosos, maridos deixaram suas mulheres para viverem seus últimos momentos nos braços das amantes. Grandes e pequenas confidências vieram à tona e até o Zé Vaqueiro, cabra macho e valente, respeitado por todos, resolveu assumir a frescura reprimida. Nada escandalizava a ninguém, porque nada mais importava. E quando as águas do rio Sêco entraram de cidade a dentro e derrubaram a igreja e uma dezena de casas, ninguém segurava mais ninguém. Foi um festival de aberrações sexuais que fariam corar de vergonha as jovens do Night & Day.

Lá pras cinco da madrugada, a chuva e o vento pararam. Sumiram os raios. Calaram-se os trovões. E um sol, num céu sem nuvens, foi, aos poucos, surgindo no horizonte.

Na gruta, alguém catucou o Boi Preto, que parecia dormir.

- Boi Preto... o mundo não acabou !

Boi Preto estava morto.

E São José da Serra Buchuda jamais voltou a ser a mesma.

Seu mundo sem graça chegára ao fim.

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