O sonho que durou dez dias
Ao ver o amigo ao longe, na mesa do bar, tomando sua cervejinha, ao entardecer, teve um susto tremendo, mas logo sentiu que tinha que ir até lá, a fim de descobrir o que estava acontecendo.
- Alcebíades ? - perguntou baixinho, quase num sussurro.
- Que foi ? - retrucou o outro. Tá com problema na voz ? Fale alto, homem, e sente-se aqui. Tome um copinho de cerveja...
- Mas... é você mesmo ? - tornou a perguntar, botando a mão de leve no ombro do Alcebíades.
- Quem queria que fosse ? O Antônio Fagundes? Claro que sou eu, o velho Alce. Quer que mostre os documentos ? - debochou, segurando os ovos.
- Não pode ser. Você morreu. Eu fui ao seu velório, ao seu enterro. Vi que estava lá, no caixão, mortinho da silva !
- Ah, isso é outra história. Depois eu conto. Por enquanto, sente-se e tome um copo de cerveja. Relaxe. Fique frio.
Mesmo sem acreditar no que via e ouvia, o Justino começou a beber, sem tirar os olhos assustados do amigo.
- Foi bom te encontrar. Amanhã, estarei aqui com o Neves. Já marcamos. Mandei preparar uma fava daquelas...
- Você tá falando do Neves... o Oscar ?
- Dele mesmo. Que outro Neves conhecemos ?
- Mas o Oscar... o Oscar Neves também morreu !
- Garanto que explico tudo. Mas tu tens que prometer que aparecerás por aqui amanhã !
- Devo estar sonhando...
- Estaremos à tua espera, eu e o Neves. Não vá faltar !
Ao ouvir uma voz de mulher chamando pelo seu nome, acordou em sobressalto.
- Justino ! Seis horas. Levante-se, senão vai chegar atrasado ao trabalho !
- Graças a Deus estou em casa ! - exclamou aliviado, ao ouvir a voz de Letícia, sua esposa.
Durante alguns minutos, ficou sentado à beira da cama, com as mãos na cabeça, procurando entender o que acontecêra.
- Foi um sonho. Só podia ser um sonho. Tinha que ser...
Só para provocar risos, contou tudo o que sonhára à esposa e ao filho, Claúdio, durante o café da manhã.
- Quer dizer que nem depois de morto Alcebíades te deixa em paz, hein ? E o que é pior: carregando você pra bebedeira, como sempre fez !
- Não brinque, Letícia. Parecia real.
- Apesar de tudo, foi melhor encontrar o Alce do que o safado do Neves, aquele raparigueiro ! - alfinetou a mulher.
Durante todo o dia, na repartição pública onde trabalhava, o Justino não conseguiu tirar o sonho da cabeça.
À noite, estava vendo televisão, deitado no sofá da sala, quando adormeceu.
E lá estavam os dois, o Alcebíades e o Neves, no mesmo bar, acenando pra ele.
- Isso é que é homem de palavra ! Prometeu que vinha e veio mesmo ! - saudou o Alcebíades.
- Me dá um abraço, Justino ! - disse o Neves, com espalhafato, todo risonho. Fazia mais de um ano que a gente não se via !
- Claro - acrescentou Justino -, faz mais de um ano que você morreu.
- Ninguém morre, amigão. Ninguém morre. Lembra-se da Rosinha-Bunda-Grande ? - perguntou, já puxando uma mulher que estava afastada para perto dele. Pois olha a Rosinha aqui ! E continua boa e gostosa como sempre !
- A Rosinha... - esfregou os olhos o Justino, para ver melhor. Ela sofreu um acidente de carro. Nós choramos a sua morte !
- Como vê, a gente podia ter economizado aquelas lágrimas... A Rosinha tá aqui e com a bunda cada vez maior !
- A cerveja tá esquentando - lembrou o Alcebíades. Afinal, nós viemos aqui pra beber ou pra conversar ? - perguntou, repetindo a antiga publicidade da Antarctica.
Puxado pelos amigos, em meio à brincadeiras, Justino sentou-se à mesa, tomou um gole da cerveja geladinha e disse consigo mesmo:
- Preciso acordar. Não aguento mais esse sonho !
- Vamos erguer um brinde ao nosso reencontro ! - sugeriu o Alcebíades.
- Um brinde ao reencontro ! - exclamou o Neves, acrescentando: E um brinde ao Juca Safado e ao Pedro Teimoso, que estarão com a gente amanhã !
O tilintar do despertador quase fez o Justino pular da cama. Suado, ofegante, dirigiu-se à Letícia, que estava ali, ao seu lado, ainda com cara de sono:
- Sonhei de novo.
- De novo ? Com o Alcebíades ?
- Com o Alcebíades... O Neves... e...
- ...e quem mais ?
Lembrou-se que a mulher odiava a Rosinha, desde o dia em que a encontrou sentada no seu colo, lá no bar.
- Nada. Ninguém mais. Preciso procurar o Jório.
- Um psicólogo e psiquiatra. Acha que tá ficando doido ?
- Acho.
- Ao chegar ao consultório do doutor Jório, o Justino foi logo recebido pelo amigo de tantos anos.
- Notei que estava muito aflito ao telefone. Que houve ? Algum problema com a Letícia ?
- Não. O casamento, agora, vai muito bem.
- E qual é o problema ?
- Meu problema é o sonho.
- Sonho ? Que história é essa ?
- Há dois dias venho sonhando o mesmo sonho.
- O mesmo ?
- É como uma novela de TV. Surgem novos personagens, mas o cenário é sempre o mesmo: o Bar da Fava.
- Mas o Bar da Fava fechou, desde que o Benedito - o nêgo Bené - morreu. E isso já faz uns cinco anos. E como faz falta, hein ? A gente ficou sem ter um local para nossos encontros de fins de semana.
- E sabe quem estava lá no bar ? No primeiro dia, o Alcebíades. No segundo, o Neves e a Rosinha.
- Todos mortos.
- E pra amanhã, já anunciaram que estarão por lá o Juca Martins - aquele safado - e o Pedro Tavares - o teimosinho.
- Mortos também.
- Acha que estou ficando maluco ?
Pela primeira vez, desde que começára a atender o amigo, o doutor Jório ficou sério e falou como profissional:
- Quando chegamos aos cinquenta, sessenta anos, não temos como escapar das tristezas provocadas pelo falecimento de amigos. De vez em quando, lá se vai mais um. E o sub-consciente costuma nos pregar peças. Sendo o arquivo do cérebro, ele libera imagens de acordo com as provocações emocionais, aproveitando justamente o momento em que dormimos e estamos mais vulneráveis. A morte do Alce, que foi o último, deve ter provocado todos os sonhos. Mas não acredito que aconteça de novo. Pode dormir em paz. Agora, que você já conhece as causas, os efeitos deixarão de existir.
Só que não foi bem assim. No dia seguinte, Justino voltou a sonhar com o Alcebíades, o Neves, a Rosinha, o Juca Safado e o Pedro Teimoso, tendo entrado em cena, inclusive, um elemento inesperado - o próprio nêgo Bené, o dono do bar. Cada vez mais nervoso, sem saber o que fazer, resolveu dar um tempo pra ver se a coisa acabava. No nono encontro, todas as mesas do bar estavam ocupadas por velhos e queridos amigos, que tinham partido, deixando saudades. Esse último encontro, no entanto, foi diferente:
- A partir de amanhã - disse o Alcebíades, ao se despedir -, você ficará para sempre com a gente ! Ficará aqui... em nossa companhia... à espera dos amigos que virão !
Apavorado, voltou ao consultório.
- Não é brincadeira. Estou morrendo de medo. Você tem que me ajudar. Não quero mais dormir. Nunca mais.
Sendo médico, o amigo notou que algo sério estava se passando com Justino. Algo grave acontecêra ou estaria acontecendo com seu cérebro. Convenceu-o a fazer um eletroencefalograma. E marcou com ele um encontro em sua casa, à noite, onde tomariam alguns uísques, bateriam novos papos e procuraria descontrai-lo um pouco.
À noite, enquanto Letícia conversava com a mulher do doutor Jório, os dois amigos bebiam, contavam anedotas e relembravam histórias acontecidas ao longo de suas vidas. Lá pra meia-noite, o Justino, depois de não sei quantas doses de bebida, adormeceu no sofá.
- Olha só quem vem chegando, Neves... o Justino !
- Seja bem-vindo, amigão ! Pensei que não viesse mais !
- Reunimos a turma toda !
- Vamos lá, turma ! Um brinde !
Na hora de acordar o Justino, pois a Letícia estava morrendo de sono e queria ir embora, o doutor Jório empalideceu.
- O pulso... o coração...
- O que houve, Jório ? - perguntou Letícia.
- Ele... ele está morto ! - concluiu.
E a festa no Bar da Fava entrou pela madrugada.
Uma eterna madrugada, com certeza.
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