Ponto final
Não tinha mais como continuar enganando
a si próprio. Ele estava sendo seguido. Alguém o queria pegar. Como nos seus contos policiais,
cheios de suspense, mistério e ação, a
atmosfera reinante naquele escritório, onde costumava escrever até tarde da noite,
preparando mais um
livro de sucesso,
era típica de
um filme de Hitchcock. Chovia
muito lá fora e os raios, que acompanhavam a trovoada, fizeram
com que a rede elétrica do edifício se tornasse
irregular, apagando quase todas as luzes
do escritório, deixando acesa, apenas, uma delas e a
tela do monitor do seu micro, onde
escrevia as suas
histórias. Sem quase nenhuma convicção,
tentava convencer-se a si mesmo
que nada
demais esta- va
acontecendo, que todas as suas suspeitas só existiam na imaginação e que
o resto fazia par te da trama intrigante do seu
conto, onde um escritor
era perseguido por um
louco-homicida, que nunca aparecia por inteiro, a não ser através
de bilhetes enigmáticos
e telefonemas rápidos, quando a pala-vra morte era
apenas sibilada por três vezes, sem maiores explicações. Como na vida real. Ali estavam, em suas
mãos, os
dois bilhetes recebidos. Num deles: “Prepare-se. Sua hora
está chegando.” No outro:
“Não devia ter
escrito a história da minha
vida. Vai pagar por isso.” E um dos
quatro tele-fonemas, também estava
ali, devidamente gravado. Apertou, com o dedo, o play
do mini-gravador e ouviu, mais
uma vez, aquela
voz rouca dizendo: “Você não devia ter escrito
aquilo. Não podia ter contado o que fiz e o que
faço sem a minha autorização. O que
você fez só
tem um preço: a sua
vida.” Sabia que um
maluco qualquer tinha botado na cabeça que um dos contos publicados havia
retratado fatos por ele
vividos e que não podiam chegar
ao conhecimento do público. E agora ? O que
poderia fazer ? Já lêra e relêra todos os seus antigos escritos,
especialmente os do seu último livro - A
Voz do Carrasco -, cujo roteiro da história-título poderia se enquadrar nos
acontecimentos verdadei-rmente incríveis que
começaram a fazer parte do seu dia-a-dia, há algumas semanas,
mas nada encon-trara de definitivo, que o ajudasse a
identificar o seu pretenso assassino. Escritor policialesco, envol- vendo, nos
seus contos, as mais intrigantes narrativas, Alberto Pereira era um nome conhecido em todo o país, despontando
como um dos maiores contistas da atualidade. Seus dois
mais recentes livros haviam se
tornado best-sellers. Estava no apogeu
da fama, quando,
de repente, teve início a
perseguição. Pri-meiramente, sentiu-se observado nas ruas, no restaurante,
na banca da esquina, nas tardes de
autógrafos, em toda parte. Tinha a impressão de que alguém o seguia.
Até ao chegar em casa e, mais ainda, ao entrar no prédio, onde ficava o
seu escritório, sabia que estava sendo observado. Mas como dizer isso a alguém ?
Dos amigos, haveria de ouvir risos e galhofas. Elogiariam, com certeza,
a sua imaginação prodigiosa, e
acrescentariam que o trabalho em demasia o estava deixando maluco. Até mesmo Nilda, a sua esposa,
conhecendo-o como ninguém, poderia
fingir preocupação, mas não deixaria de rir, irônicamente, lá no íntimo.
E se - maluquice extrema - procurasse a polícia
e fizesse a
denúncia: “Delegado, tenho
a impressão de que estou sendo
seguido !” Gozação geral. Não dava mesmo
para ter contado a ninguém. Ele fez justamente o que deveria ter feito. Ficou
mais atento a tudo o que se passava em sua volta e permaneceu em
silêncio. Só que agora estava difícil de segurar. Tinha, para
comprovar as suas desconfianças, os telefonemas e os bilhetes ameaçadores. Mesmo assim, ainda hesitava. Muita gente iria supor que tudo
não passaria de um fruto da sua fértil criatividade para provocar
uma intensa repercussão na imprensa, visando o lançamento do seu
próximo livro. É claro que todos pensariam assim ! Isso é um
truque de publicidade ! - diriam,
com certeza . Sem assunto para o último conto - exatamente aquele que
fecharia o livro a ser publicado
brevemente -, Alberto resolveu adotar os próprios acontecimentos que
passaram a fazer parte da sua vida como tema da história a
ser desenvolvida. E foi
assim que a tela em branco do monitor
começou a ser mexida, ao escrever o
título, em letras
grandes: “Ponto Final”.
Para ele, não podia ser outro. Afinal, parte da trama já estava pronta.
O escritor famoso, especialista em
contos policiais, havia denunciado, sem
querer, numa das suas narrativas, a vida pregressa de um louco-homicida,
que passou a ameaçá-lo de morte,
utilizando-se de bilhetes (sempre deixados à porta do seu escritório) e de
telefonemas, feitos em horas incertas,
através daquela voz de sempre, rouca e sibilante.Até o suspense, criado
por sua hesitação em contar aos amigos
ou à polícia o que estava ocorrendo,
já era uma
realidade. Só que ainda haviam várias perguntas no ar. Perguntas
sem respostas. E que ainda
o intrigavam. Quem seria o misterioso
assassino que desejava matá-lo ? Seria
uma brincadeira de mau gosto de um dos seus ardorosos fãs ou ele existiria realmente ? Aceitando a
sua existência, qual a sua identidade ? Seria mesmo um louco-homicida ? Em que
conto ele terá se enquadrado, a ponto de julgá-lo responsável pela
descoberta dos seus crimes ? Levará adiante suas ameaças ou o que pretende é apenas amedrontá-lo
para que
possa divertir-se com o pavor
provocado ? Havia, portanto,
muitas interrogações, o que dificultava, ao escritor, achar o desfecho, a chave
de tudo, o ponto final. Com a história na cabeça, foi fácil desenvolvê-la até o
instante em que o personagem principal -
ele próprio - se encontrava. As derradeiras
palavras escritas, porém,
traduziam todo o medo que, momentâneamente, começou a sentir.
Sozinho, o amplo escritório,
pela primeira vez, pareceu-lhe pequeno,
apertado, sufocante. Na
semi-escuridão, sentia-se como um barco à deriva, em meio à tempestade,sem
saber o que fazer, aguar-dando, apenas, o estrondo do casco se
partindo de encontro
a rochedos ponteagudos. É
possível que tivesse levado aquela história
longe demais. Que
rissem, que debochassem, que não
acreditassem numa só palavra do que dissesse, mas teria sido melhor,
pelo sim ou pelo não, que tivesse contado tudo
à polícia, à sua esposa ou a algum amigo
em quem confiasse. Estaria mais
tranquilo agora. Mas não
o fizera. E
ali estava, na
solidão daquele escritório,
naquela noite chuvosa
e iluminada apenas
pelos clarões dos
raios, receioso de que
pudesse ter cometido o maior erro
da sua vida. De todos os seus contos, em
apenas três focalizara a
figura do louco-assassino. Caso não se
tratasse de uma Brin-cadeira, em uma daquelas histórias de ficção,
estaria o relato da vida do homem que
pretendia ma- tá-lo.
Numa delas - em “A Voz do Carrasco”
- havia coincidências quanto aos telefonemas. As ameaças eram as mesmas.
Todas as frases curtas e incisivas. Em outra, uma sequência
de crimes hediondos, com requintes de
pura perversidade, podia
significar a linha
adotada pelo louco para liquidar
suas vítimas. Com a intenção de livrar o mundo
do pecado, começou a
matar prostitutas e gays,
apunhalando-os por repetidas vezes, para, depois, derramar ácido sobre suas genitálias. O conto “Em Nome de Deus” podia
ser o escolhido, se não fosse a certeza,
de acordo com pesquisas realizadas pela
polícia, de que
apenas um crime, com essas características, teria
ocorrido na cidade há mais de dois
meses, quando uma prostituta perdeu a vida.
Um crime só. Não uma sequência. No
último conto, um frio
percorreu-lhe a espinha.O louco,
identificando-se como técnico da companhia
telefônica, dera um jeito
de ficar a sós no escritório e tirar um molde da chave para entrar
às escondidas e assassinar
o seu desafeto. Parou de escrever. Deu um
giro na cadeira
e observou, atentamente, às suas
costas. O ambiente não permitia
que alguém se ocultasse sem que fosse visto. E no banheiro ? E ... na biblioteca ? Levantou-se e ficou
parado diante da porta fechada. A
biblioteca... ele poderia estar
ali, à sua espera. Talvez fosse mais prudente chamar a
polícia. Hesitante, segurou o trinco.
Alberto preferiu parar de
escrever, realmente. Olhou em volta,
como o seu personagem. Seus olhos se fixaram na
porta da biblioteca. Seria possível ? - quis saber de si mesmo. E voltou
ao teclado.
Abriu
a porta lentamente, sem ter como esconder o
nervosismo. Pulsação alterada.
Coração descompassado. Respiração cada vez mais difícil. Estava suando,
embora o sistema de ar condicionado estivesse funcionando. Apertou o
interruptor, mas as luzes não
acenderam. O recinto estava ilumi-nado apenas por uma
pequena luz de emergência, ligado
a um gerador e pelos raios que, de vez em quando,
cortavam o céu e faziam com
que uma claridade momentânea permitisse observar móveis e estantes.
Enfiou a mão no bolso e segurou o revólver que havia comprado no dia anterior.
Mesmo sem nunca ter usado uma arma em toda a sua vida. De súbito, saindo de
trás de uma estante, uma sombra se move.
Susto tremendo.
- Quem... quem está aí ?
Após permanecer em
silêncio por algum
tempo, o homem, totalmente
calvo, de compleição física bastante acentuada, vestido
como um funcionário da empresa
telefônica, colocou-se ao
lado da única luz acesa, deixando-se ver, empunhando um punhal e
dizendo:
- Se tivesse pesquisado também em
outras cidades do Estado teria
notado que mais de vinte gays e prostitutas já foram
assassinados. Como no seu conto. E todos
foram eliminados em nome de
Deus.Da mesma forma como o farei
com você, que
não só descobriu
a minha missão, como a revelou ao
público, o que é imperdoável. Foi lendo
uma das suas histórias no computador, que aprendi o truque do
consertador de telefones. E aqui estou,
em carne e osso, pronto para
matá-lo.
Paralisado pelo medo, Alberto viu o homem aproximar-se e, com um
gesto brusco, elevar a mão com o
punhal. Não hesitou. Sacou o revólver e atirou por três
vezes, até que o
louco, contor-cendo-se em dores, caisse ao chão. O pesadelo chegara ao fim. Mas ele matara um homem.
- Em nome de Deus - consolou-se.
Ponto final.
Agora, estava de volta à
realidade. Levantou-se e olhou para a
porta da biblioteca. Ficou indeciso apenas por um momento, mas logo seguiu em
frente. Segurou o trinco
com firmeza e abriu a
porta devagar. Seus olhos foram
diretos à enorme estante,
único local onde
alguma pessoa poderia estar oculta. Metendo a mão no bolso,
certificou-se se o revólver ainda
estava lá. Pela enorme janela de
vidro, entrava, a cada instante, a repentina claridade dos raios. Empunhando o
revólver, foi caminhando, passo a passo, em direção ao local onde estaria o
criminoso quando, de repente,
sentiu uma dor intensa no ombro,
como se tivesse sido
apunhalado. Caiu ao chão, gemendo e viu o louco, erguendo o punhal, partindo
para desferir outro
golpe. Apertou o gatilho e atirou várias vezes, até que a mons-truosa
criatura caisse ao seu lado, já sem vida.
Procurando conter o sangue que lhe
escorria do ferimento no ombro, levantou-se cambaleante e usou o telefone:
- Alô ? É da polícia ?
Dois dias depois, novamente diante
do monitor, resolveu adaptar o final do
seu conto à realida-de. Fez
pequenas modificações, usando o teclado com a natural dificuldade de quem está com o braço direito na tipóia, e
ficou, por um instante, parado, lendo e relendo a história,
ainda sem querer acreditar na incrível aventura que acabara de viver.
- Ninguem vai imaginar que tudo
aconteceu de verdade - disse, baixinho.
Botou um novo ponto final no trecho
modificado, desligou tudo,
fechou o escritório e foi embora.
Sem mais sentir aquela estranha sensação de estar
sendo seguido.