quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O CONTO DO MÊS - fevereiro 2012



                            Ponto final

                               Não tinha mais como continuar enganando a si próprio. Ele estava sendo seguido.                                                          Alguém o queria  pegar. Como nos seus contos policiais, cheios de suspense, mistério e ação, a atmosfera reinante                                              naquele escritório, onde costumava escrever até tarde da noite, preparando  mais  um  livro  de  sucesso,  era  típica  de  um  filme de Hitchcock. Chovia muito lá fora e os raios, que acompanhavam a trovoada,  fizeram  com  que  a rede elétrica do edifício se tornasse irregular, apagando quase todas as luzes  do  escritório,  deixando acesa, apenas, uma delas e a tela do monitor do seu micro, onde  escrevia  as  suas  histórias. Sem quase nenhuma convicção,  tentava convencer-se a si  mesmo que  nada  demais  esta-  va  acontecendo, que todas as suas suspeitas só existiam na imaginação e que o resto  fazia  par te da trama intrigante do seu conto, onde  um  escritor  era  perseguido  por um  louco-homicida, que nunca aparecia por inteiro, a não ser  através  de  bilhetes  enigmáticos  e  telefonemas  rápidos, quando a pala-vra morte era apenas sibilada por três vezes, sem maiores explicações.  Como na vida real. Ali estavam, em suas mãos,  os  dois  bilhetes  recebidos. Num  deles:  “Prepare-se. Sua  hora  está  chegando.”  No outro:  “Não  devia  ter  escrito  a história da minha vida.  Vai pagar por isso.” E um dos quatro tele-fonemas, também estava  ali,  devidamente  gravado. Apertou, com o dedo, o play do  mini-gravador  e ouviu, mais  uma  vez,  aquela  voz  rouca  dizendo: “Você não devia ter escrito aquilo. Não podia ter contado o que fiz e o que  faço sem a minha autorização. O que  você  fez  só  tem  um  preço: a sua  vida.”  Sabia  que  um maluco qualquer tinha botado na cabeça que um dos contos publicados havia retratado fatos  por  ele  vividos e que  não podiam chegar ao conhecimento do público. E agora ?  O  que  poderia fazer ? Já lêra e relêra todos os seus antigos escritos, especialmente os do seu  último livro - A Voz do Carrasco -, cujo roteiro da história-título poderia se enquadrar nos acontecimentos  verdadei-rmente  incríveis que começaram a fazer parte do seu dia-a-dia, há algumas  semanas,  mas  nada  encon-trara de definitivo, que o ajudasse a identificar o seu pretenso assassino. Escritor policialesco, envol- vendo, nos seus contos, as mais intrigantes narrativas, Alberto Pereira era um  nome conhecido em todo o país, despontando como um dos maiores contistas da atualidade. Seus  dois  mais  recentes livros haviam se tornado best-sellers. Estava no apogeu  da  fama,  quando,  de  repente, teve início a perseguição. Pri-meiramente, sentiu-se observado nas ruas, no restaurante, na  banca da esquina, nas tardes de autógrafos, em toda parte. Tinha a impressão de que alguém  o  seguia. Até ao chegar em casa e, mais ainda, ao entrar no prédio, onde ficava o seu  escritório,  sabia que estava  sendo observado.  Mas como dizer isso a  alguém ?  Dos amigos, haveria de ouvir risos e galhofas. Elogiariam, com certeza, a sua imaginação  prodigiosa, e acrescentariam que o trabalho em demasia o estava deixando maluco. Até  mesmo Nilda, a sua esposa, conhecendo-o como ninguém, poderia  fingir preocupação, mas não deixaria de rir, irônicamente, lá no íntimo. E se - maluquice extrema - procurasse a polícia  e  fizesse  a  denúncia:  “Delegado,  tenho  a  impressão de que estou sendo seguido !”  Gozação geral. Não dava mesmo para ter contado a ninguém. Ele fez justamente o que deveria ter  feito. Ficou  mais atento a tudo o que se passava em sua volta e permaneceu em silêncio. Só que agora estava difícil de segurar. Tinha,  para  comprovar as suas desconfianças, os telefonemas e os  bilhetes ameaçadores. Mesmo assim, ainda  hesitava. Muita gente iria supor que  tudo  não  passaria  de um fruto da sua fértil criatividade para provocar uma intensa repercussão na imprensa, visando o lançamento do  seu  próximo  livro. É  claro que todos pensariam assim ! Isso é um truque de publicidade ! - diriam,  com certeza . Sem assunto para o último conto - exatamente aquele que fecharia o livro a ser publicado  brevemente -, Alberto resolveu adotar os próprios acontecimentos que passaram a fazer parte da sua vida como tema da história  a  ser  desenvolvida.  E  foi assim que a  tela em branco do monitor começou a ser mexida,  ao escrever o título,  em  letras  grandes:  “Ponto Final”. Para ele, não podia ser outro. Afinal, parte da trama já estava pronta.
              O escritor famoso, especialista em contos policiais, havia denunciado,  sem querer,  numa das  suas narrativas, a vida pregressa de um louco-homicida, que passou a ameaçá-lo de  morte, utilizando-se de bilhetes (sempre deixados à porta do seu escritório) e de telefonemas,  feitos em horas incertas, através daquela voz de sempre, rouca e sibilante.Até o suspense, criado por  sua hesitação em contar aos amigos ou à polícia o que  estava  ocorrendo,  já  era  uma  realidade. Só que ainda haviam várias perguntas no ar. Perguntas sem  respostas. E  que ainda  o  intrigavam. Quem seria o misterioso assassino que desejava matá-lo ?  Seria uma brincadeira de  mau  gosto de um dos seus ardorosos  fãs ou ele existiria realmente ? Aceitando a sua existência, qual a sua identidade ? Seria mesmo um louco-homicida ? Em que conto ele terá se enquadrado, a ponto de julgá-lo responsável pela descoberta  dos seus crimes ? Levará  adiante suas ameaças  ou o que pretende é apenas amedrontá-lo para  que  possa  divertir-se  com o pavor   provocado ?  Havia, portanto, muitas interrogações, o que dificultava, ao escritor, achar o desfecho, a chave de tudo, o ponto final. Com a história na cabeça, foi fácil desenvolvê-la até o instante em  que o personagem principal - ele próprio - se encontrava. As derradeiras  palavras  escritas,  porém,  traduziam todo o medo que, momentâneamente, começou a sentir.
           Sozinho, o amplo escritório, pela  primeira  vez, pareceu-lhe  pequeno,  apertado,  sufocante. Na semi-escuridão, sentia-se como um barco à deriva, em meio à tempestade,sem saber o que fazer, aguar-dando, apenas, o estrondo do casco  se  partindo  de  encontro  a  rochedos ponteagudos. É possível que tivesse levado aquela história  longe  demais.  Que  rissem,  que debochassem, que não acreditassem numa só palavra do que dissesse, mas teria sido  melhor,  pelo sim ou pelo não, que tivesse contado tudo à polícia, à sua esposa ou a algum amigo  em  quem confiasse. Estaria mais tranquilo agora.  Mas  não  o  fizera.  E  ali  estava,  na  solidão  daquele  escritório,  naquela  noite  chuvosa  e  iluminada  apenas  pelos  clarões  dos  raios, receioso  de  que  pudesse  ter cometido o maior erro da sua vida. De todos os seus contos, em  apenas  três focalizara a figura  do louco-assassino. Caso não se tratasse de uma Brin-cadeira, em uma daquelas histórias de ficção, estaria o relato da vida do  homem  que  pretendia  ma-  tá-lo.  Numa delas - em “A Voz do Carrasco”  -  havia  coincidências quanto  aos telefonemas. As ameaças eram as mesmas. Todas as frases curtas e incisivas. Em outra, uma  sequência  de crimes hediondos, com requintes de  pura  perversidade,  podia  significar  a  linha  adotada pelo louco para  liquidar suas vítimas. Com a intenção de livrar o mundo  do  pecado, começou  a  matar prostitutas  e gays, apunhalando-os por repetidas vezes, para, depois, derramar ácido sobre suas  genitálias. O conto “Em Nome de Deus” podia ser o escolhido, se não fosse a certeza,  de acordo com pesquisas realizadas pela  polícia,  de  que  apenas  um  crime, com essas características, teria ocorrido na cidade  há mais de dois meses, quando uma  prostituta perdeu  a  vida. Um crime só. Não uma sequência. No  último conto,  um  frio  percorreu-lhe  a espinha.O louco, identificando-se como técnico  da  companhia  telefônica, dera  um  jeito  de ficar a sós no escritório e tirar um molde da chave para entrar às  escondidas  e assassinar  o seu desafeto.  Parou  de escrever. Deu  um  giro  na  cadeira  e observou, atentamente, às suas  costas. O ambiente  não permitia que alguém se ocultasse sem que fosse visto. E no banheiro ?  E ... na biblioteca ? Levantou-se e ficou parado diante da porta  fechada.  A  biblioteca...  ele poderia estar ali,  à sua espera. Talvez  fosse mais prudente chamar  a  polícia.  Hesitante,  segurou o trinco.
           Alberto preferiu parar de escrever, realmente. Olhou  em  volta,  como  o  seu personagem. Seus olhos se fixaram na porta da biblioteca. Seria possível ? - quis saber de si mesmo. E  voltou  ao teclado.
           Abriu  a  porta  lentamente, sem  ter como esconder  o  nervosismo.  Pulsação  alterada.   Coração descompassado. Respiração cada vez mais difícil. Estava suando, embora o sistema de ar condicionado estivesse funcionando. Apertou  o  interruptor, mas as  luzes  não  acenderam. O recinto estava ilumi-nado apenas por  uma  pequena luz de  emergência,  ligado  a  um  gerador e pelos raios que, de vez em quando, cortavam o céu e  faziam  com  que uma claridade momentânea permitisse observar móveis e estantes. Enfiou a mão no bolso e segurou  o  revólver que havia comprado no dia anterior. Mesmo sem nunca ter usado uma arma em toda a sua vida. De súbito, saindo de trás de uma  estante, uma sombra se move. Susto tremendo.
          - Quem... quem está aí ?
           Após permanecer  em  silêncio  por  algum  tempo, o homem, totalmente  calvo,  de  compleição física bastante acentuada, vestido como um funcionário da empresa  telefônica,  colocou-se  ao  lado da  única luz acesa,  deixando-se ver, empunhando um punhal e dizendo:
          - Se tivesse pesquisado também em outras cidades do Estado teria  notado  que  mais de vinte gays e prostitutas já foram assassinados. Como no seu conto. E todos  foram  eliminados em nome de Deus.Da mesma forma como  o  farei  com  você,  que  não  só  descobriu  a  minha missão, como a revelou ao público, o que  é  imperdoável. Foi  lendo  uma  das  suas histórias  no computador, que aprendi o truque do consertador de telefones. E aqui estou,  em  carne e osso, pronto para matá-lo.
           Paralisado pelo  medo, Alberto viu o homem aproximar-se  e,  com  um  gesto  brusco, elevar a mão com o punhal. Não hesitou. Sacou o revólver e atirou por  três  vezes,  até  que  o louco, contor-cendo-se em dores, caisse ao chão. O  pesadelo chegara ao fim. Mas ele  matara um homem.
          - Em nome de Deus -  consolou-se.
          Ponto final.
         Agora, estava de volta à realidade.  Levantou-se e olhou  para  a porta da biblioteca. Ficou indeciso apenas por um momento, mas logo seguiu em frente. Segurou  o  trinco  com  firmeza  e abriu a  porta devagar.  Seus olhos  foram  diretos à  enorme  estante,  único  local  onde  alguma pessoa poderia estar oculta. Metendo a mão no bolso, certificou-se se o  revólver  ainda  estava lá.  Pela enorme janela de vidro,  entrava, a cada instante,  a repentina claridade dos raios. Empunhando o revólver,  foi caminhando, passo a  passo, em direção ao local onde estaria  o  criminoso  quando, de  repente,  sentiu  uma dor intensa no ombro, como se  tivesse  sido  apunhalado. Caiu ao chão, gemendo e viu o louco, erguendo o punhal,  partindo  para  desferir  outro  golpe. Apertou o gatilho e atirou várias vezes, até que a mons-truosa criatura caisse ao seu lado, já sem vida.
            Procurando conter o sangue que lhe escorria do ferimento no ombro, levantou-se cambaleante e usou o telefone:
           - Alô ? É da polícia ?
             Dois dias depois, novamente diante do monitor, resolveu adaptar o final do  seu  conto à realida-de. Fez pequenas modificações, usando o teclado com a natural dificuldade de  quem está com o braço direito na tipóia, e ficou, por um instante, parado, lendo e relendo a  história,  ainda sem querer acreditar na incrível aventura que acabara de viver.
              - Ninguem vai imaginar que tudo aconteceu de verdade - disse, baixinho.
              Botou um novo ponto final no  trecho  modificado,  desligou  tudo,  fechou o escritório e foi embora.
              Sem  mais sentir aquela estranha sensação de estar sendo seguido.
                                                              

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