A
MORTE DO ALFREDINHO
O pior da gente completar setenta anos
são as notícias que nos chegam sobre a morte de amigos que
estão justamente dentro da nossa faixa de idade. Quando menos se espera, aparece
alguém pra conversar, trazendo sempre a notícia do falecimento de um conhecido.
- Sabe quem morreu ?
- Não.
- O Alfredinho.
- Que Alfredinho ?
- O cardiologista. Aquele que fez
teu check-up.
- O Alfredo Borba ?
- Ele mesmo.
- De que foi ?
- Do coração. Enfarto fulminante.
A cada notícia dessas, por mais
que se procure disfarçar, não dá para esconder o susto que se leva com a
tristeza pela morte do amigo e com a incerteza quanto ao que poderá acontecer
amanhã.
Todos nós temos que morrer um dia
- raciocinamos. Preciso acostumar-me com esses
porta-vozes fúnebres. Por que devo abalar-me com a morte, se ela é
inevitável ?
E decidimos:
- Daqui pra frente não vou dar
mais a mínima pra isso.
O que não está nos planos é aquela
dor no braço esquerdo, tendo um amigo mais jovem como confidente.
- Pode ser um torcicolo, não acha
? - perguntamos.
- Talvez.
- Que quer dizer com esse “talvez”
?
- Como sou seu amigo, acho que
deve procurar um médico.
- Besteira.
- O Alfredinho começou assim.
Queixou-se de uma dor no braço esquerdo quando a gente tomava um uísque no bar
da sua casa. E olha que ele era cardiologista...
Temos que ter calma, mas não
podemos facilitar. O certo é procurar um médico.
- Como vai esse grande jornalista
?
- Com uma grande dor no braço
esquerdo.
- E está com medo, hein ?
- É que a dor incomoda...
- Temos a mesma idade. Sei o que
sente.
- Resolvi procura-lo pela amizade
que nos une, desde os tempos de colégio.
- Principalmente agora, com a
morte do Alfredinho.
- Não me fale mais nisso.
- Vamos fazer um eletro.
Já que começamos, temos que ir até
o fim. O negócio é não se impressionar com as entrelinhas.
- O eletro deu em ordem.
- Ainda bem.
- Mas alguns exames nem tanto.
- Que quer dizer ?
- Como vai o cigarro ?
- Bem, obrigado.
- Quantos por dia ?
- Dez... quinze...
- Procure diminuir. Se não puder
deixar o fumo, mantenha o mínimo - apenas o suficiente para acalmar o vício.
- Tem também a tosse... aquela
gosma...
- Aí não tem jeito. Só deixando o
cigarro de vez.
- Vamos mudar de assunto.
- Mande despachar esta receita e
cumpra as instruções à risca. Vai melhorar da tosse.
- E no mais ?
- Não adianta se preocupar
com o resto. Na nossa idade, temos uma
expectativa de vida. Com um pouco de cuidado, dá pra alcançar esses anos que
nos restam...
Podemos concluir, depois dessa,
que o melhor mesmo é nunca procurar um médico da nossa faixa de idade.
- Voltou cedo pra casa... Que
houve ?
- Nada, querida.
- Soube da morte do Alfredinho ?
- Soube.
- A Dina me ligou. Foi de repente.
Estava tomando um uísque com uns amigos.
- Eu sei.
- Vamos ao velório.
- Temos que ir... mesmo ?
- Claro. Ele era seu amigo.
- Essa
dor no braço esquerdo...
- Deve estar cheio de médico por
lá. Aproveite e faça uma consulta.
- De que adianta ? Será que o
Alfredinho se esqueceu de se consultar ?
- Realmente, é desestimulante.
Justo o Alfredinho, o melhor cardiologista da cidade, morre do coração.
- Dizem que foi de repente. Pum.
Sem tempo pra nada.
- É. E ele nunca sentiu dor
nenhuma. Principalmente no braço esquerdo.
- Vou tomar um bom banho.
Em certos momentos, como no
velório de um amigo - especialmente quando esse amigo tinha a mesma idade da
gente, e se cuidava bem mais do que a maioria dos mortais, pois era médico -,
aí, sim, é que temos que nos fazer de forte.
- Meus pêsames, Dina. Lamento.
- Oh, meu Deus... ainda ontem ele
falou em você !
- Falou em mim ? E o que disse ?
- Disse que estava preocupado com
sua saúde... que você precisava se cuidar... que estava tossindo demais !
- Ele... disse isso ?
- Sempre tão preocupado com a
saúde dos outros, acabou esquecendo-se da sua.
Temos que aguentar o choro da
família, enxugar as lágrimas da viúva, e aproveitar, ao entrarmos
estrategicamente no banheiro, para olharmo-nos ao espelho, o que nos vai deixar
mais apavorados ainda.
- Que houve comigo ? Estou velho !
Liquidado, a ponto de entrar em
pânico, pegou a mulher pelo braço:
- Despeça-se da Dina. Invente
qualquer coisa. Vamos embora.
No outro dia, nada de enterro.
Devemos fugir de cemitério. E mais: quando alguém chegar com uma notícia
daquelas, é melhor fugir como o diabo foge da cruz
- Sabe quem morreu ?
- Nem sei nem quero saber.
- Mas é seu amigo...
- Que tal uma cervejinha gelada no
bar da esquina ?
- Mas...
- Eu pago.
Até os setenta, existem a vida e a
morte. Depois, só a vida.
Ou o que resta dela.
É melhor aproveitar.
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