quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O CONTO DO MÊS - novembro 2011




              A MORTE DO ALFREDINHO 

     O pior da gente completar setenta anos são as  notícias  que nos chegam sobre a morte de amigos que estão justamente dentro da nossa faixa de idade. Quando menos se espera, aparece alguém pra conversar, trazendo sempre a notícia do falecimento de um conhecido.
              - Sabe quem morreu ?
              - Não.
              - O Alfredinho.
              - Que Alfredinho ?
              - O cardiologista. Aquele que fez teu check-up.
              - O Alfredo Borba ?
              - Ele mesmo.
              - De que foi ?
              - Do coração. Enfarto fulminante.
              A cada notícia dessas, por mais que se procure disfarçar, não dá para esconder o susto que se leva com a tristeza pela morte do amigo e com a incerteza quanto ao que poderá acontecer amanhã.
              Todos nós temos que morrer um dia - raciocinamos. Preciso acostumar-me com esses  porta-vozes fúnebres. Por que devo abalar-me com a morte, se ela é inevitável ?
              E decidimos:
              - Daqui pra frente não vou dar mais a mínima pra isso.
              O que não está nos planos é aquela dor no braço esquerdo, tendo um amigo mais jovem como confidente.
              - Pode ser um torcicolo, não acha ? - perguntamos.
              - Talvez.
              - Que quer dizer com esse “talvez” ?
              - Como sou seu amigo, acho que deve procurar um médico.
              - Besteira.
              - O Alfredinho começou assim. Queixou-se de uma dor no braço esquerdo quando a gente tomava um uísque no bar da sua casa. E olha que ele era cardiologista...
              Temos que ter calma, mas não podemos facilitar. O certo é procurar um médico.
              - Como vai esse grande jornalista ?
              - Com uma grande dor no braço esquerdo.
              - E está com medo, hein ?
              - É que a dor incomoda...
              - Temos a mesma idade. Sei o que sente.
              - Resolvi procura-lo pela amizade que nos une, desde os tempos de colégio.
              - Principalmente agora, com a morte do Alfredinho.
              - Não me fale mais nisso.
              - Vamos fazer um eletro.
              Já que começamos, temos que ir até o fim. O negócio é não se impressionar com as entrelinhas.
              - O eletro deu em ordem.
              - Ainda bem.
              - Mas alguns exames nem tanto.
              - Que quer dizer ?
              - Como vai o cigarro ?
              - Bem, obrigado.
              - Quantos por dia ?
              - Dez... quinze...
              - Procure diminuir. Se não puder deixar o fumo, mantenha o mínimo - apenas o suficiente para acalmar o vício.
              - Tem também a tosse... aquela gosma...
              - Aí não tem jeito. Só deixando o cigarro de vez.
              - Vamos mudar de assunto.
              - Mande despachar esta receita e cumpra as instruções à risca. Vai melhorar da tosse.
              - E no mais ?
           - Não adianta se preocupar com  o resto. Na nossa idade, temos uma expectativa de vida. Com um pouco de cuidado, dá pra alcançar esses anos que nos restam...
              Podemos concluir, depois dessa, que o melhor mesmo é nunca procurar um médico da nossa faixa de idade.
              - Voltou cedo pra casa... Que houve ?
              - Nada, querida.
              - Soube da morte do Alfredinho ?
              - Soube.
              - A Dina me ligou. Foi de repente. Estava tomando um uísque com uns amigos.
              - Eu sei.
              - Vamos ao velório.
              - Temos que ir... mesmo ?
              - Claro. Ele era seu amigo.
              - Essa dor no braço esquerdo...
              - Deve estar cheio de médico por lá. Aproveite e faça uma consulta.
              - De que adianta ? Será que o Alfredinho se esqueceu de se consultar ?
              - Realmente, é desestimulante. Justo o Alfredinho, o melhor cardiologista da cidade, morre do coração.
              - Dizem que foi de repente. Pum. Sem tempo pra nada.
              - É. E ele nunca sentiu dor nenhuma. Principalmente no braço esquerdo.
              - Vou tomar um bom banho.
              Em certos momentos, como no velório de um amigo - especialmente quando esse amigo tinha a mesma idade da gente, e se cuidava bem mais do que a maioria dos mortais, pois era médico -, aí, sim, é que temos que nos fazer de forte.
              - Meus pêsames, Dina. Lamento.
              - Oh, meu Deus... ainda ontem ele falou em você !
              - Falou em mim ? E o que disse ?
              - Disse que estava preocupado com sua saúde... que você precisava se cuidar... que estava  tossindo demais !
              - Ele... disse isso ?
              - Sempre tão preocupado com a saúde dos outros, acabou esquecendo-se da sua.
              Temos que aguentar o choro da família, enxugar as lágrimas da viúva, e aproveitar, ao entrarmos estrategicamente no banheiro, para olharmo-nos ao espelho, o que nos vai deixar mais apavorados ainda.
              - Que houve comigo ? Estou velho !
              Liquidado, a ponto de entrar em pânico, pegou a mulher pelo braço:
              - Despeça-se da Dina. Invente qualquer coisa. Vamos embora.
          No outro dia, nada de enterro. Devemos fugir de cemitério. E mais: quando alguém chegar com uma notícia daquelas, é melhor fugir como o diabo foge da cruz
              - Sabe quem morreu ?
              - Nem sei nem quero saber.
              - Mas é seu amigo...
              - Que tal uma cervejinha gelada no bar da esquina ?
              - Mas...
              - Eu pago.
              Até os setenta, existem a vida e a morte. Depois, só a vida.
              Ou o que resta dela.
              É melhor aproveitar.


   

                             

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