A VOLTA DE TEREZA
Era
grande a preocupação
da família com o
Heitor. E não
podia ser de outra maneira.
A recente tragédia
ainda estava ali, presente
em todas
as suas cores, viva,
palpitante, suscitando angústia e dor, como
se tivesse ficado
impregnada nas paredes , nos móveis, em
cada canto daquela casa,
lembrando, a todo instante, a
beleza, o encanto, o sorriso e a ternura, principais traços da personalidade de Tereza, que
soube reinar como
uma rainha naquele autêntico
palácio à beira-mar. E foi assim que todos os familiares atenderam
ao chama- do de dona
Rosinha, a matriarca dos Guimarães Pereira, para
uma reunião, naquele
domingo ensolarado, na
mansão da praia,
onde Heitor praticamente se
enclausurara, após a morte
da esposa. O
objetivo era um só:
fazer com que o jovem viúvo voltasse a se interessar pela vida
e a comandar
as empresas do pai,
como, na verdade, sempre fizera - e com sucesso - depois que o velho, vítima de um
enfarte, nunca mais
voltou à plenitude de suas
condições físicas e
mentais, passando a
viver, quase que
vegetativamente, numa UTI de
um hospital. Sendo filho único e herdeiro
natural de uma verdadeira fortuna, Heitor não podia se
dar ao luxo de se ausentar das empresas
por mais de três meses.
- Precisamos fazer com que volte a
sentir interesse pela
vida - argumentava a mãe. Afinal, a Tereza morreu. Nada pode mudar isso. Temos
que forçá-lo a
aceitar a realidade. Ele não pode
continuar preso naquela casa, isolado
de todos, sem atender a ninguém,
como a
esperar que Tereza venha ao
seu encontro. Ela morreu.
Nada pode alterar essa verdade. E ele não pode continuar vivendo à espera de uma
ilusão. Conto com todos vocês para o encontro deste domingo na mansão da praia.
E foi assim que, logo cedinho, naquele domingo cheio de sol,
dezenas de carros começaram a ser estacionados nos amplos jardins da casa, conduzindo os
parentes mais chegados e todos os
diretores das empresas da
família.
Todos sabiam que a missão não era das mais fáceis,
para não denomina-la
impossível. Aqueles que conheciam
Heitor mais de perto, que jamais o viram afastar-se de uma decisão
tomada, sabiam, melhor que os outros, das dificuldades que
teriam pela frente. Imaginavam a dor que o abatêra. E respeitavam o seu sofrimento. O seu desejo
de isolar-se por
um tempo. Só que o isolamento estava prolongando-se
além da conta. Especialmente para ele, que deixara de ser, com o
afastamento do pai, apenas um homem, para ser um conjunto de empresas, responsável direto pela
vida de centenas de pessoas, que
dependiam das suas decisões
para continuar sobrevivendo. Ao
negar-se a receber seja quem fosse,
isolando-se inteiramente naquela casa, sem o mínimo contato com o mundo
exterior, todos, a pedido da própria
dona Rosinha, resolveram acatar
aquela decisão. Mas os dias foram
passando. As semanas. Os meses. Agora - entendiam todos -,
alguma providência tinha
que ser tomada.
Não era possível
continuar de olhos
fechados, como se nada estivesse
acontecendo, enquanto o Heitor, sem atender sequer a
telefonemas, permanecia dentro
daquela casa, esperando a volta de Tereza.
Para servi-lo, permitiu apenas a
presença da velha
Engrácia, que praticamente o criou, com
seus quase trinta anos de bons
serviços prestados à família.
Por telefone, era a fiel
serviçal que mantinha
dona Rosinha informada
sobre tudo o que ocorria no casarão, onde se sentia perdida, sem ter uma só
pessoa com quem conversar.
- Isso aqui tá cada vez
mais triste, dona Rosinha - disse, na última vez em que telefonou. O menino continua trancado no
quarto de cima, deitado na cama de casal,
esperando dona Tereza voltar. Tem dia que não come nadinha. Nem toca na comida que levo. A bandeja volta
do jeito que foi. Chega tá
magrinho, coitado. E não fala nada. Se eu puxo conversa, ele nem liga.
Se fecha no quarto de novo e fica lá,
deitado, olhando pro retrato da patroa.
Foram essas informações
da Engrácia, afora a
preocupação de todos com
os destinos das empresas, que fizeram
com que dona Rosinha, a despeito da
intransigência do filho,
marcasse a reunião,
que já se iniciava na imensa sala
de visitas.
- Além das preocupações tipicamente
maternas, que me deixam
transtornada com a situação do meu
filho - disse, dirigindo-se a todos, a matriarca -, aflige-me,
também, os problemas que envolvem as empresas, que é o principal motivo da
maioria dos que aqui estão. Subirei ao quarto e convocarei o Heitor para a reunião, sem saber, ao certo, à essa altura, se ele
atenderá ou não ao meu apelo.
Diante da porta do
quarto, bateu levemente e se fez anunciar:
- Heitor... está me ouvindo ? É sua
mãe... Preciso falar urgentemente com você.
Silêncio.
- Abra a porta
por um momento - pediu.
Nada.
- Abra a porta,
meu filho - insistiu.
De dentro, nem
um ruído sequer.
- Estamos reunidos na sala à sua espera. Temos assuntos
inadiáveis a tratar.
Assuntos que dependem de sua
decisão. Vamos aguardar a sua presença.
Não sairemos de lá enquanto não comparecer. Ficaremos a tarde e a noite
toda, se for preciso. Mas não
sairemos sem antes falarmos com você. E,
além de tudo isso, estou louca de
saudade. Preciso vê-lo...
abraçá-lo... beijá-lo. Não me falte. A sua mãe ainda está viva e precisa de você.
Sem
dizer mais nada, dona Rosinha desceu as escadas devagar e
foi amparada, já
nos últimos degraus, pela velha Engrácia.
- Ele vai descer ?
- Não
sei, minha querida. Na verdade, não sei. Ele não disse uma única
palavra.
As duas se encaminharam para uma das
varandas e, por alguns minutos, ficaram em silêncio, observando, do alto daquela
encosta, as ondas quebrando nas
rochas, lá embaixo.
- No dia em que eles se casaram, a maré tambem estava cheia,
como agora, com esses vagalhões indo de encontro aos rochedos e fazendo
idêntico barulho -
lembrou dona Rosinha, com os olhos cheios de lágrimas. Ele estava
extremamente feliz. Abraçou-me aqui nesta varanda , e confessou
sua alegria. “Sou um homem
de sorte: tenho a melhor mãe
do mundo e
acabo de encontrar a mulher da minha vida !” - disse, sorrindo. E era
uma verdade, pelo menos no que se referia à Tereza. Jamais vi duas
pessoas tão apaixonadas. Eles se amaram como só se pode amar uma vez na vida:
com toda a intensidade possível. Era lindo vê-los juntos, desdobrando-se nu- ma sequência de
carinhos, tão bonitos e felizes,
como se fossem uma só pessoa.
Se é verda- de que cada ser
humano tem direito à sua outra
metade, cabendo-nos procurá-la
pelos cami- nhos
do mundo, Tereza era,
sem dúvida, a parte que faltava ao Heitor. Ninguém
poderia ima- ginar, no entanto, o
que estava por acontecer. Na noite de
núpcias, após horas
inesquecíveis do mais puro amor, Tereza adormeceu
nos braços de Heitor e nunca mais despertou. No outro
dia, em prantos, descobriu que
ela estava morta.
Havia sofrido um colapso
cardíaco durante a noite e,
sem emitir um só gemido, despedira-se da vida.
A pobre e sofrida Engrácia apenas baixou a cabeça e, com
lágrimas nos olhos e com uma expressão
de profunda tristeza no rosto, perguntou:
- A senhora acha que o nosso menino
voltará a ser o que era antes, após sentir
tão grande dor ?
- Não
sei, Engrácia - respondeu,
angustiada, a mãe. Sinceramente, não sei. Foi um golpe duro demais para ele. Só o tempo será capaz de
dizer se terá forças para retornar
à uma
vida normal.
- Um dia desses - lembrou
a velha serviçal -, falou-me
pela última vez. Abriu
a porta do quarto e me
disse: “Você e mamãe têm que acreditar
em mim. Tereza logo estará de volta.
Quando isso acontecer, tudo voltará ao
normal”.
- Os mortos não voltam - concluiu,
aflita, dona Rosinha. E nós
duas sabemos muito
bem disso.
As horas passavam lentamente. As
pessoas, espalhadas pelos diversos cômodos
da mansão, fica-vam, em pequenos
grupos, ora em silêncio, ora
falando baixinho, à espera de
um improvável desfecho: a
chegada do Heitor ao recinto da reunião. Por volta
da meia-noite, dona Rosinha achou que não adiantava mais esperar e pediu à todas as
pessoas presentes que comparecessem à sala de visitas.
- Já esperamos demais - disse, com voz
embargada.
Neste exato momento, as luzes da
mansão se apagaram e se acenderam,
por repetidas vezes, como
se um grave defeito tivesse ocorrido na rede elétrica. Enquanto
todos se
entreolhavam, assustados, um trovão ribombou lá fora, e mais outro, prenunciando
uma sequência de
raios, que passou a iluminar
o firmamento, coberto, de repente,
por núvens negras
e pesadas. Só que a tempestade
não veio. O que veio foi um silêncio estranho,
que invadiu a
casa e dominou as pessoas,
até que
a voz de Heitor se fez ouvir no
alto da
escada.
- É uma felicidade, meus
amigos, recebê-los em minha casa, para uma reunião !
Todos olharam espantados, enquanto o
Heitor, alegre e feliz,
de braços abertos, começava a descer
a escada, abraçando a mãe - ainda sob o impacto da surpresa - e
apertando as mãos dos amigos.
- Parem de me olhar desse jeito e
vamos à reunião.
Todos
ouviram o Heitor falar dos planos para o futuro das empresas, dar
conselhos aos diretores
sobre os problemas apresentados
e se despedir de todos, dizendo:
- Amanhã, logo cedinho, estarei no
batente. Conto com vocês.
Após beijar a mãe que, mais
tranquila e feliz, voltara a sorrir, pediu licença a
todos e voltou
ao seu quarto.
Ao fechar a porta, o ambiente
semi-escuro viu-se iluminado por uma luz azulada.
- Deu tudo certo. Preferi não dizer
a ninguem que você tinha voltado. Que nunca mais vai me deixar. Que está aqui
ao meu lado para sempre. Que não estou mais sozinho.
Ao seu lado, ninguém. Nada que os
olhos comuns pudessem ver. Apenas aquela luz azulada que o envolvia a todo instante e que
se fez mais incandescente ainda
quando se deitou na cama, sussurando palavras de amor.
- Nunca mais me deixe, Tereza ! Não posso viver sem você !
No dia seguinte, a cama em
desalinho denunciava tudo o que acontecera
naquela noite fantástica.
Engrácia foi recebida com um beijo e serviu o café da manhã a um
Heitor exultante de alegria, que se alimentou muito bem e, de
pasta na mão, dirigiu-se ao carro na garagem.
- Tem certeza que está tudo bem,
patrãozinho ?
- Tudo bem,
Engrácia. E por que não estaria ?
Vamos ao
trabalho. Tenho muito o que fazer.
Antes de
dar partida ao carro, disse à Engrácia:
- Não me pergunte porquê. Leve
uma bandeja com um café-da-manhã ao meu quarto. Deixe lá.
Quando o carro
afastou-se, a velha levou o café ao quarto.
Por via das dúvidas, com tudo aquilo
que a Tereza mais gostava.
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