segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

O CONTO DO MÊS - dezembro 2011



         A VOLTA DE TEREZA                   
          Era  grande  a  preocupação  da  família  com  o  Heitor.  E  não  podia ser de outra  maneira. A  recente  tragédia  ainda estava ali,  presente em  todas  as  suas cores,  viva,  palpitante, suscitando  angústia e  dor, como  se  tivesse  ficado  impregnada  nas paredes , nos móveis,  em  cada  canto  daquela casa,  lembrando, a  todo  instante, a  beleza, o encanto, o sorriso e a ternura,  principais traços da personalidade de  Tereza, que  soube  reinar  como  uma  rainha naquele autêntico palácio à beira-mar. E  foi  assim que todos os familiares atenderam ao  chama-  do de dona  Rosinha,  a  matriarca dos Guimarães Pereira,  para  uma  reunião,  naquele  domingo  ensolarado,  na  mansão  da  praia,  onde  Heitor praticamente se enclausurara, após  a  morte  da  esposa.  O  objetivo  era  um  só: fazer com que o jovem viúvo voltasse a se interessar pela  vida  e  a  comandar  as  empresas do  pai,  como,  na verdade,  sempre fizera - e com sucesso -  depois que o velho, vítima de  um  enfarte,  nunca  mais  voltou à  plenitude de  suas  condições  físicas  e  mentais,  passando  a  viver,  quase  que  vegetativamente, numa UTI de  um  hospital.  Sendo filho único  e  herdeiro natural  de  uma verdadeira fortuna, Heitor não podia se dar ao luxo de se  ausentar das empresas por mais de três meses.
            - Precisamos fazer com que volte a sentir  interesse  pela  vida - argumentava a  mãe.  Afinal, a Tereza morreu. Nada pode mudar  isso. Temos  que  forçá-lo  a  aceitar  a realidade. Ele não pode continuar preso naquela casa, isolado  de  todos, sem atender a ninguém, como  a  esperar que Tereza venha ao  seu  encontro. Ela morreu. Nada  pode  alterar essa verdade. E ele  não pode continuar vivendo à espera de uma ilusão. Conto com todos vocês para o encontro deste domingo na  mansão da praia.
            E foi assim que, logo  cedinho, naquele domingo cheio de sol, dezenas de carros começaram a ser estacionados nos amplos jardins  da casa, conduzindo  os  parentes  mais  chegados e todos  os  diretores  das empresas da família.
            Todos sabiam que a  missão não era das mais  fáceis,  para  não  denomina-la  impossível. Aqueles  que conheciam Heitor mais de perto, que jamais o viram afastar-se de uma  decisão  tomada,  sabiam,  melhor que os outros, das dificuldades que teriam pela frente. Imaginavam a dor que o abatêra. E  respeitavam o seu  sofrimento. O seu  desejo  de  isolar-se  por  um  tempo.  Só que o isolamento estava prolongando-se além da conta.  Especialmente  para ele, que deixara de ser, com o afastamento do pai, apenas um homem, para ser um conjunto de empresas, responsável direto pela vida de centenas de  pessoas,  que  dependiam das  suas  decisões  para continuar sobrevivendo.  Ao negar-se a  receber seja quem fosse, isolando-se inteiramente  naquela  casa, sem o mínimo contato com o mundo exterior,  todos, a pedido da própria dona Rosinha, resolveram  acatar aquela decisão. Mas os dias foram  passando. As semanas. Os meses. Agora - entendiam  todos -,  alguma  providência  tinha  que  ser  tomada.  Não  era  possível  continuar  de  olhos  fechados, como se  nada  estivesse  acontecendo, enquanto o Heitor, sem atender sequer  a  telefonemas,  permanecia dentro daquela casa, esperando a volta de Tereza.
             Para servi-lo, permitiu apenas a presença  da  velha  Engrácia, que  praticamente o  criou, com  seus quase trinta anos  de  bons  serviços prestados à família.
             Por telefone, era a  fiel  serviçal  que  mantinha  dona  Rosinha  informada  sobre  tudo  o que ocorria no casarão, onde se sentia  perdida, sem ter uma  só  pessoa com quem conversar.
           - Isso aqui tá cada  vez  mais triste, dona Rosinha - disse, na última vez em que  telefonou. O menino continua trancado no quarto  de  cima, deitado na cama de casal, esperando  dona Tereza voltar. Tem  dia que não come nadinha. Nem  toca na comida que levo. A bandeja  volta  do jeito que foi. Chega tá  magrinho, coitado. E não fala nada. Se eu puxo conversa, ele nem liga. Se  fecha no quarto de novo e fica lá, deitado, olhando pro retrato da patroa.
          Foram essas  informações  da Engrácia,  afora  a  preocupação  de todos  com  os  destinos das empresas, que fizeram com que dona Rosinha, a  despeito  da  intransigência  do  filho,  marcasse  a  reunião,  que  já se iniciava na imensa sala de visitas.
        - Além das preocupações  tipicamente  maternas, que  me deixam transtornada com a  situação  do  meu filho - disse, dirigindo-se a todos, a matriarca -,  aflige-me,  também,  os  problemas que envolvem  as empresas, que é o principal motivo da maioria dos que aqui estão.  Subirei  ao quarto e convocarei o Heitor  para a reunião, sem saber, ao  certo, à essa altura, se  ele  atenderá  ou  não ao meu apelo.
            Diante da porta  do  quarto, bateu levemente e se fez anunciar:
           - Heitor... está me ouvindo ? É sua mãe... Preciso  falar  urgentemente com você.
            Silêncio.
          - Abra  a porta  por  um  momento - pediu.
             Nada.
           - Abra a  porta,  meu  filho - insistiu.
             De dentro,  nem  um  ruído sequer.
            - Estamos reunidos  na sala à sua espera. Temos assuntos inadiáveis  a  tratar.  Assuntos que  dependem de sua decisão.  Vamos  aguardar a sua  presença.  Não sairemos de lá enquanto não comparecer. Ficaremos a tarde e a  noite  toda,  se for preciso. Mas não sairemos  sem  antes falarmos com você.  E,  além  de tudo  isso, estou louca  de  saudade.  Preciso vê-lo... abraçá-lo... beijá-lo. Não me falte. A sua mãe ainda está viva e precisa de você.   
          Sem  dizer  mais nada,  dona Rosinha desceu as escadas devagar  e  foi  amparada,  já  nos  últimos  degraus, pela velha Engrácia.
        - Ele vai descer ?
       - Não  sei, minha querida. Na verdade, não sei. Ele não disse uma única palavra.
        As duas se encaminharam para uma das varandas e,  por  alguns minutos, ficaram em  silêncio, observando, do alto daquela encosta, as ondas quebrando nas  rochas,  lá embaixo.
        - No dia em que  eles se casaram, a maré tambem estava cheia, como agora, com esses vagalhões indo de encontro aos rochedos e fazendo idêntico  barulho  -  lembrou dona Rosinha, com os olhos cheios de lágrimas.   Ele estava  extremamente feliz. Abraçou-me aqui nesta varanda , e  confessou  sua  alegria. “Sou um homem de  sorte:  tenho a melhor  mãe  do  mundo  e  acabo de encontrar a mulher da minha vida !” - disse, sorrindo. E era uma verdade,  pelo menos  no que se referia à Tereza. Jamais vi duas pessoas tão apaixonadas. Eles se amaram como só se pode amar uma vez na vida: com toda a intensidade possível. Era lindo vê-los juntos,  desdobrando-se  nu- ma sequência  de  carinhos,  tão bonitos e felizes, como se fossem uma  só  pessoa.  Se é  verda- de que cada ser humano tem direito à  sua  outra  metade,  cabendo-nos  procurá-la  pelos  cami-  nhos  do  mundo, Tereza  era,  sem dúvida, a parte que faltava ao Heitor.  Ninguém  poderia  ima- ginar, no entanto, o que estava por acontecer. Na  noite  de  núpcias,  após  horas  inesquecíveis  do  mais puro amor, Tereza  adormeceu  nos braços de Heitor e nunca mais despertou.  No outro  dia, em  prantos, descobriu  que  ela  estava  morta.  Havia sofrido  um colapso cardíaco  durante  a noite e,  sem  emitir  um só gemido, despedira-se da vida.
          A pobre e sofrida  Engrácia apenas baixou a cabeça e, com lágrimas nos olhos e com  uma  expressão  de profunda tristeza no rosto, perguntou:
        - A senhora acha que o nosso menino voltará a ser o que era antes, após sentir  tão  grande dor ?
       - Não  sei,  Engrácia - respondeu, angustiada, a mãe. Sinceramente, não sei. Foi um golpe duro  demais para ele. Só o tempo será capaz de dizer se terá forças para  retornar à  uma  vida  normal.
        - Um dia desses -  lembrou  a velha serviçal -, falou-me  pela  última  vez. Abriu  a  porta  do quarto e me disse: “Você e mamãe têm  que acreditar em mim. Tereza logo  estará de volta. Quando isso  acontecer, tudo voltará ao normal”.
       - Os mortos não voltam - concluiu, aflita, dona  Rosinha. E  nós  duas  sabemos  muito  bem disso.
        As horas passavam lentamente. As pessoas, espalhadas pelos diversos cômodos  da  mansão, fica-vam, em pequenos grupos, ora em silêncio, ora  falando  baixinho,  à  espera  de  um  improvável desfecho: a chegada do Heitor ao  recinto  da reunião. Por  volta  da  meia-noite,  dona Rosinha achou que não  adiantava mais esperar e pediu à todas as pessoas presentes que comparecessem à sala de visitas.
         - Já esperamos demais - disse, com voz embargada.
         Neste exato momento, as luzes da mansão se apagaram e se acenderam,  por  repetidas  vezes, como  se um grave defeito tivesse ocorrido na rede elétrica. Enquanto todos  se  entreolhavam,  assustados, um  trovão ribombou lá fora, e mais outro,  prenunciando  uma  sequência  de  raios, que  passou a  iluminar  o firmamento,  coberto, de  repente,  por  núvens   negras  e  pesadas. Só que a tempestade não veio. O que veio foi um silêncio estranho,  que  invadiu  a  casa  e dominou as pessoas, até  que  a  voz de Heitor se fez ouvir no alto  da  escada.
        - É uma felicidade,  meus  amigos, recebê-los em minha casa, para uma reunião  !
         Todos olharam espantados, enquanto o Heitor,  alegre  e  feliz,  de braços abertos, começava a descer  a escada, abraçando a mãe - ainda sob o impacto da surpresa - e apertando as mãos  dos amigos.
         - Parem de me olhar desse jeito e vamos à reunião.
          Todos  ouviram o Heitor falar dos planos para o futuro das  empresas, dar  conselhos  aos  diretores  sobre os problemas apresentados  e  se despedir de todos, dizendo:
          - Amanhã, logo cedinho, estarei no batente. Conto com vocês.
           Após beijar a mãe que, mais tranquila e feliz, voltara a sorrir, pediu licença  a  todos  e  voltou  ao  seu quarto.
            Ao fechar a porta, o ambiente semi-escuro viu-se iluminado por uma luz azulada.
           - Deu tudo certo. Preferi não dizer a ninguem que você tinha voltado. Que nunca mais vai me deixar. Que está aqui ao meu lado para sempre. Que não estou mais sozinho.
            Ao seu lado, ninguém. Nada que os olhos comuns pudessem ver. Apenas aquela luz azulada que o envolvia a todo instante e  que  se  fez mais  incandescente  ainda  quando se deitou na cama, sussurando palavras de amor.
            - Nunca mais me deixe,  Tereza ! Não posso viver sem você !
             No dia seguinte, a cama em desalinho denunciava tudo o que acontecera  naquela  noite fantástica.
              Engrácia foi recebida  com um beijo e serviu o café da manhã a  um  Heitor  exultante  de alegria, que se alimentou muito bem e, de pasta na mão, dirigiu-se ao carro na garagem.
              - Tem certeza que está tudo bem, patrãozinho ?
             - Tudo  bem,  Engrácia.  E por que não estaria ? Vamos  ao  trabalho. Tenho  muito  o que fazer.
               Antes  de  dar  partida  ao carro, disse à Engrácia:
               - Não me pergunte porquê. Leve uma bandeja com  um café-da-manhã ao meu  quarto. Deixe lá.
              Quando o  carro  afastou-se, a velha levou o café ao quarto.
              Por via das dúvidas, com tudo aquilo que a Tereza mais gostava.  
                
  


     

Nenhum comentário:

Postar um comentário