segunda-feira, 13 de setembro de 2010

O CONTO DO MÊS - SETEMBRO


A força da terra

É muito difice, seu doutô, prá quem num sabe o qui é vivê na roça, intendê os mutivo que me fizero fazê o qui fiz. Cumparado com o sinhô, num passo dum pobre matuto,sem eira-nem-beira, qui véve, desna minino, de inxada na mão, iscavacano a terra do majó Netim, pro mode ajudá meu pai a tirá o sustento da gente. Imbora num seja nadinha - um gravêto de pau sêco sôrto no meio do mato -, e o sinhô, pelo qui vêno, é um hôme formado, de ané no dêdo, qui iscreve coisa pro jorná, fico achano qui tarvêis num intenda o qui me levô a fazê essa disconjuntice. Mai cuma tá me pidino, vô contá tudo o qui se deu, désna o dia im que essa pobre gente se arranchou puraqui. Qui diacho vinha fazê aquele povo todo, vindo num se sabe donde, nas terra do majó Netim - nesses cafundós do Juda, longe pra burro, onde o diabo perdeu as ispora ? A gente oiava um pro outro sem atiná coisa cum coisa. Inté qui o majó ajuntô a tropa pro mode dizê o qui tava havêno...

- Todas essas pessoas que invadiram as minhas terras pertencem ao Movimento dos Sem Terra. Elas querem terra para plantar e viver, o que é justo. Mas invadem as propriedades dos outros, avaliando-as como improdutivas, o que é injusto. Sem paciência para esperar uma negociação entre o Governo e os proprietários, visando a desapropriação da área, tomam-na para si, subvertendo as leis que garantem a posse da gleba, afrontando, assim, a justiça, como o fazem aqui e agora. Todos vocês, que sempre viveram nesta terra e daqui tiraram o dinheiro para o sustento das suas famílias, serão, sem dúvida, os maiores prejudicados. A terra invadida, que logo seria utilizada para pastagem do gado, aumentando o ganho de vocês, em pouco tempo não pertencerá mais à fazenda. É o que pretendo evitar. O MST armou os invasores. Nós também estamos armados. A terra é nossa. Legalmente, ela nos pertence. Não podemos deixar de lutar por ela. Para evitar o confronto armado, vamos enviar um grupo de homens ao local para conversar com os sem-terra e convencê-los a desistirem da invasão. Se eles resistirem, teremos que expulsá-los. Por bem ou por mal. O Chico Cirineu, que é meu homem de confiança, já escolheu o grupo que vai até lá. Espero que os convença, sem briga, a sairem das nossas terras. Boa sorte.

Daquele conversóro todo do Majó Netim, só intendi uma coisa: ele quiria que nóis butasse os cabra pra corrê das suas terra. Sem pudê dizê nada, arrecebi, do Chico Cirineu, um fuzi e uma caixa de bala, e cumeçemo a andá - eu e mai uns quinze - pra donde tinha se dado o rôlo. Machano pra lá, que ficava coisa de quage dez légua, foi qui pude pensá na vida que vinha levano e nas coisa que tava se assucedêno. Cuma já dixe, vosmicê, qui é doutô, qui sabe lê e iscrevê e qui véve na cidade, pode inté sabê um bucado de coisa qui nóis num sabe, mai deve de tá cum um fuzuê na cabeça pro mode intendê o qui se passô puraqui. Pro sinhô pudê atiná cum o qui se deu, tem qui sê do jeito qui a gente é. Num pode pensá cuma doutô. Tem qui sê cuma nóis. Num é só o jeito de falá qui é deferente. O jeito de vivê, tombem. O jeito de intendê as coisa e de gostá da terra. Desna qui naci, conto nos nos dedo as vez im qui tive qui i na cidade. É qui nóis num percisava daquilo lá. Tudo o qui a gente quiria, tava aqui. A casinha... a terra pro mode prantá... os carinho da muié... o amô dos fio... e o dinheirim suado qui o majó paga por sumana pro mode cumprá pano e comida. Nóis num tinha do qui arrecramá. Desna o avô... desna o pai... a vida era isso... sem tirá nem pô. Inté o dia im qui a gente chegô lá, no Pontá das Ema, pro mode cunversá cum os sem-terra. Chico Cirineu butô bala no gatilho e dixe pra todo mundo qui tava lá:

- O Majó João Neto, dono das terra, não quer ninguém aqui. Mandou dar inté amanhã, ao meio-dia, para que saiam da sua propriedade. Se não sair por bem, vão ter que sair na bala. Vamos ficar por aqui e esperar. Quem não sair... morre !

Teno ficado de guarda numa grota, donde pudia oiá o qui se passava naquele amuntua- do de casinha de lona, pude ajeitá as idéia na cabeça. Aquela gente qui tava ali pudia sê tudo, meno cabra de pêia qui véve increncando. Os hôme tumava conta das muié, qui tumava conta dos bruguélo, qui ficava pro lá brincano, cuma quarqué minino ou minina qui tem puraí. O qui a gente via era um bucado de famia percurano um lugá pro mode ficá. As muié cuidava da janta, lavava os pratos, varria o chão, dava banho nos fio. Os hôme, de inxada na mão, iscavacava a terra e prantava. Num era bandido, não. Era roceiro qui nem eu. Só qui tava na terra qui num era dele, fazeno tudo aquilo sem pidi licença ao doutô Netim. A desorde era essa. Só essa. E purisso pudia inté morrê. Assunte bem o qui tô dizêno, seu doutô: se aquela gente qui tava ali fosse qui nem eu, qui cuidô da terra a vida intêra cuma se fosse o dono, ganhano, toda sumana, o dinheirim pro mode sustentá a famia, juro pur Nosso Sinhô qui eles num tavam ali quereno tumá as terra dos outro. Sem tê pra donde i, sem tê cuma cuidá da muié e dos fio, sem tê um tiquinho de terra qui seja pro mode prantá, o qui diacho pode fazê um pai de famia, a não ser perdê a cabeça e sai puraí tumano um pôco de terra de quem tem dimai ? Foi cum essas idéia na cabe- beça, seu doutô, qui arresorvi falá cum os hôme qui tava lá nas barraca, cum o fito de num deixá qui se desse morte pur conta daquela desavença. Se inté o meio-dia a coisa ficasse do jeito qui tava, o sinhô pode acriditá qui o Chico Cirineu - hôme brabo e cumpridô das orde do Majó -, ia butá aquele povo pra corrê dibaxo de bala. Atinei qui percisava fazê arguma coisa pro mode num deixá que se desse uma sangueira por causa dessa ingrisia. Sem pensá im mais nada, fui me achegano duma barraca e dixe bom dia prum hôme magro, arto, qui tava cum um minino no braço. Assim qui me viu, foi dizêno:

- Bom dia, moço. Acho mió qui vorte pro lugá adonde tava.

- Só tô quereno proseá um pôco... - dixe, com jeito.

- Nóis num tem o que proseá. Tu veio pro mode tirá a gente daqui.

- Tô tentano atiná pur qui diacho tão quereno tumá as terra do Majó Netim.

- Tá bom. Se arranche, entonce. Pegue um tamborete e se assente qui eu vô contá o qui é qui nóis veio fazê aqui.

E foi assim, seu doutô, qui o hôme - qui se dizia Zé Inaço - cumeçô a contá cuma foi qui tudo se deu, pra qui toda aquela gente arresorvesse tumá conta das terra do Pontá das Ema.

- Cuma é mermo teu nome ?

- Tonho... Tonho Lima... cunhecido cuma Liminha...

- Apois, seu Tonho, o sinhô se dê pur filiz im um lugá adonde ficá cum sua famia. Nóis num tem lugá argum. A gente véve cuma uns disgarrado, sem pra donde i nem adonde ficá. A gente tem força, tem mão, tem pé, tem cabeça pro mode pensá, mais num tem a coisa mió qui um hôme deve de tê, qui é um pedaço de terra, pro mode fazê sua casa e prantá, tirano, dali, o sustento da famia. De nada dianta tê mão, se a gente num tem um pôco de terra pro mode trabaiá; de nada dianta tê pé, se a gente num tem pra donde i; de nada dianta vivê, se gente num tem cuma criá a muié e os fio.

- Mai a terra é do Majó Netim...

- Nosso Sinhô, quano fez o mundo, num deu terra pra hôme ninhum. Foi a força do poder ou do dinhêro qui deu muita terra pra uns e deixô os ôtro sem nada. A gente deve de mudá o qui tá errado. Todo hôme tem qui lutá pur seu chão. Se a lei é contra isso, nóis tem qui mudá a lei.

- Tu pode inté tá certo, Zé Inaço - pode inté qui as terra deva de sê de toda gente -, mai num é desse jeito qui o mundo é. A terra do majó é do majó. Vale o qui no papé. É terra qui o majó herdô do seu pai, qui herdô do avô, que num sai da famia. Se tu e os ôtro num saí da terra inté o meio-dia, o Chico Cirineu vai fazê cumpri as orde do Majó, vai mandá bala e matá o cabra qui ficá aqui.

- Qui mate ! Qui é qui a gente tem mai a perdê, tirante a vida ? Pode morrê um... dois... inté mais... o qui se pode fazê ? Se a morte de dez quisé dizê qui vinte ficaro cum sua terra, tá tudo bom.

- Qué dizê qui tu nem os ôtro vai arredá o pé...

- Só se fô morto...

Do jeito qui a coisa tava, seu doutô, vosmicê tá vêno qui eu num tinha outra coisa a fazê, a não sê fazê o qui fiz. Quano o só im brasa ficô im riba da cabeça da gente, bem no cocuruto do céu, o Chico Cirineu oiou pro relójo, fez siná pros hôme pro mode cercá as barraca e, de fuzi na mão, apontano pro Zé Inaço, foi logo dizêno:

- Já é meio-dia. Todo mundo tem qui sai daqui. É orde do Majó Netim, o dono das terra. Se num sai, tu vai sê o premêro a levá bala, seu cabra safado !

O doutô percisava vê a agunia da muié do Zé Inaço, chorano agarrada aos fio, e a corage daquele hôme, desaimado, sem nada fazê, esperano o disparo. Nem sei o qui diacho me levô a fazê isso, mai quano dei pur mim já tava de fuzi apontado pra cabeça do Chico Cirineu.

- Sai do meio, Liminha, qui eu vou metê bala nesse sujeito !

- Pro mode atirá nele, Chico, tu vai tê premêro qui atirá neu, e tu, qui cunhece bem a minha puntaria, sabe qui pode morrê im meu lugá !

- Tu ficô doido, hôme ? É orde do Majó Netim ! Se num sai daí, eu atiro im tu ! Sai da frente, Liminha !

- Vorte pro mode dizê ao majó qui eu tô quereno falá cum ele.

- Se num sai do meio agorinha mêrmo, eu atiro !

- Num tente.

- Lá vai bala, Liminha ! Foi tu qui pidiu !

E foi desse jeito, seu doutô, qui tudo se deu. Cum um tiro no meio da testa, o Chico Cirineu se derriô pelo chão, se estribuchô pur um tempo e, adispois, ficô lá, istendido, já sem vida. Um dos hôme foi inté à fazenda e contô tudo ao Majó Netim, qui mandô me chamá. O qui se passô adispois, o sinhô já tá sabêno. O Majó uviu o qui eu tinha pro mode dizê e, tendo ao seu lado um diputado seu amigo - hôme muito forte lá pras banda da capitá federá -, arresorveu arranjá umas terrinha praquela gente. É purisso qui mandô o avião pro mode buscá o sinhô. Inté os lecutô da televisão ele mandô qui viesse. É pra dizê qui arresorveu dá de mão beijada o Pontá das Ema a quage cem famia do povo do Zé Inaço. E vai sê tudo de papé passado. E o Majó Netim nada pidiu im troca. Eita, hôme bom da peste, seu doutô ! Só uma coisinha a gente vai dá pra ele. E é justo inté dimai. Na ôtra inleição - ele já dixe - vai sê candidato a Senadô. Tinha inté graça. A gente vai tudim votá nele. Nóis vai votá pro mode fazê cum qui todo mundo passe a tê a sua terrinha. O qui é qui o sinhô acha, doutô ?

- A minha reportagem acaba aqui. Já ouvi o que tinha de ouvir.

- E o Majó Netim ? Num vai falá cum ele ?

- Fica pra outra hora. O heroi dessa história é você.

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