terça-feira, 29 de novembro de 2011

CRÔNICA DA SAUDADE - novembro 2001




           UM LAGO ENCANTADO




              Mário Lago foi um dos mais autênticos radialistas que já conheci. Já famoso como compositor, poeta, escritor, teatrólogo e ator, ele se vangloriava de só se sentir em casa, realmente, quando estava ali, nos estúdios da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, ao lado dos colegas de profissão, como pude vê-lo, no início dos anos 60, preparando-se para gravar um dos capítulos de mais uma de suas famosas novelas radiofônicas. Com aquele seu jeitão de filosófo e de profeta, costumava dizer: O meu orgulho é ser radialista.
                Pertencente à uma família de músicos, Mário Lago não tinha como não ser um grande e talentoso compositor. Filho do maestro Antonio Lago, Mário nasceu no Rio de Janeiro, no dia 26 de novembro de 1911. O Brasil inteiro deveria estar comemorando o centenário do seu nascimento, não acham ? Seus avós, tanto o materno Giuseppe Croccia, quanto o paterno, José Lago, eram músicos. Ambos tiveram grande influência na trajetória de vida de um dos mais consagrados compositores da música popular brasileira.
            No dia 26 de novembro, em todo o Brasil – quando Mário, se estivesse vivo, completaria 100 anos – muita gente foi à televisão, especialmente à Rede Globo, onde ele, durante tantos anos, mostrou o seu talento - para lembrar  a importância do grande ator, escritor, musicista e autor de letras de obras musicais que ficaram para sempre na história da música popular brasileira, isso sem falar no que deixou escrito, com sua natural genialidade, em jornais e revistas, assim como nas dezenas de novelas que escreveu para o rádio e para a TV, além de peças de teatro.
        Era advogado, mas praticamente não exerceu a profissão, preferindo escrever para o então florescente teatro-de-revistas, onde produziu peças de sucesso, tornando-se, ao mesmo tempo, um excelente compositor e um ator genial, tendo se tornado um dos mais renomados galãs do teatro de comédia brasileiro nos anos 40. Quem pode negar seu talento invulgar como compositor, quando lembramos alguns dos seus maiores sucessos, como Ai que saudade da Amélia e Atire a Primeira Pedra, que Ataulfo Alves imortalizou ? E como teria sido o carnaval brasileiro sem a sua Aurora, marchinha que ficou para sempre ? E o nosso cancioneiro romântico como teria ficado sem o fox Nada Além, sucesso nacional com Orlando Silva, além de outras paginais imortais na voz do “cantor das multidões”, como Dá-me Tuas Mãos e Número Um, ou aquele maravilhoso Devolve, interpretado por Carlos Galhardo ? E que dizer do samba-canção Fracasso, que se imortalizou na voz de Francisco Alves ? E aquele É Tão Gostoso, seu Moço, sucesso com Nora Ney ? E o belíssimo Rua Sem Sol, com Ângela Maria ?
          Radiator e autor de programas radiofônicos de grande repercussão, Mário Lago foi um dos expoentes máximos da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Politicamente, no entanto, fez parte dos quadros do Partido Comunista Brasileiro por 50 anos e, por causa de sua intensa militância política, sofreu represálias durante a ditadura Vargas e a ditadura militar, tendo sido preso em várias ocasiões. A partir de 1966, passou a atuar, como ator, nas novelas da Rede Globo, onde se consagrou nacionalmente.
               Morreu no dia 31 de maio de 2002, no Rio, mas a sua memória não deve ser esquecida: Mário Lago é uma daquelas pessoas que nasceram pra viver para sempre. Como um lago encantado. Ali. À nossa frente. Onde a gente possa admira-lo a todo instante, com suas águas calmas e serenas. Eternamente.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

COMENTANDO A NOTÍCIA - 23/11/2011




A NOTÍCIA: - O governo do Distrito Federal mudou o nome do estádio, em Brasília,  para Estádio Nacional, mas isso está dando uma confusão danada. Em Brasília e em todo o Brasil, é a polêmica da vez: o governo do Distrito Federal mudou o nome do Estádio Mané Garrincha para Estádio Nacional. Tem até abaixo-assinado contra a mudança. A torcida ficou uma arara – não só do Botafogo, onde Mané Garrincha jogou.

NOSSO COMENTÁRIO:

                                                        
                                                       UM DRIBLE NO POVO

                          Como a abertura da Copa do Mundo de 2014 será feita no Estádio Mané Garrincha, em Brasília, com transmissão da festa inaugural do evento para todo o mundo, via rádio e TV, além de uma completa cobertura jornalística, envolvendo todos os veículos de divulgação, está claro que o governo brasiliense elegeu o acontecimento como a oportunidade que faltava para divulgar os encantos e o progresso da capital do país, mostran-do, em primeiro plano, o novo e monumental estádio que se encontra em obras, visando a grande festa do esporte mais reverenciado pelo nosso povo.

                               O Governo do Distrito Federal botou mãos à obra, arranjou dinheiro ninguém sabe onde e , num abrir e fechar de olhos, deu início a reconstrução do estádio que deverá servir de palco para a abertura da Copa, cujas obras seguem em ritmo acelerado e, como era de se esperar, devidamente superfaturado.

                              O povo brasileiro, já acostumado a lidar com o superfaturamento dessas obras inesperadas e inadiáveis, estaria disposto a fechar os olhos para tudo o que o coração não sente, desde que os prejuizos de hoje se transformassem no sucesso de amanhã, quando o mundo aplaudisse a organização e a beleza da Copa de 2014.

                              Por baixo do pano, no entanto, as autoridades governamentais toma-ram uma decisão que foi um verdadeiro drible no povo brasileiro: mudaram o nome simples e popular do estádio – Estádio Mané Garrincha – para um nome que, aos olhos do Governo, daria mais força ao evento: Estádio Nacional de Brasília.

                             Os protestos já começaram e não serão apenas dos botafoguenses, como eu, que vibraram com as jogadas do genial Mané Garrincha, não só no Botafogo, como na Seleção Brasileira, mas de torcedores de todos os clubes do país, que tinham, no eterno driblador, o seu grande ídolo, independente da camisa que vestia.

                            Se o Governo do Distrito Federal deseja se sair bem nesta Copa do Mundo, mostrando todos os encantos de Brasília, deve começar com uma demonstração de respeito aos ídolos do esporte que pretende promover, mantendo o nome original do estádio e, mais ainda, inaugurando, na oportunidade, um grande museu, mostrando quem foi o nosso Mané  Garrincha e qual a sua importância para o desenvolvimento do futebol brasileiro.

                             Garrincha fez parte de uma fase importante do nosso futebol e foi a sua presença, não só em partidas memoráveis que disputou pelo Botafogo, ao lado de Nilton Santos, Didi, Gerson e tantos outros, onde as suas jogadas e os seus dribles fizeram história,  mas – e principalmente – na seleção brasileira, onde, com suas pernas tortas, encheu de alegria um país inteiro.

                                 Quando o novo estádio de Brasília recebeu o nome de Mané Garrin-cha, os aplausos, na sua inauguração, vieram de todo o país.

                           Se o governo do Distrito federal insistir na mudança do nome do Estádio, em vez de aplausos, ele ouvirá uma vaia que virá, com certeza, de todos os recantos desta imensa nação.    


quinta-feira, 17 de novembro de 2011

CRÔNICA DA SAUDADE - 19/11/2001



PRESENÇA DE AUGUSTO


      Não há como separar o poeta da sua terra natal. Por mais que ele tenha vivido no sul do país, a sua história, como a sua sombra, teria de ficar aqui.

      Augusto Carvalho Rodrigues dos Anjos nasceu logo ali, em Cruz do Espírito Santo, no dia 20 de abril de 1884, filho de Alexandre Rodrigues dos Anjos e de Sinhá Mocinha – dona Córdula de Carvalho Rodrigues dos Anjos. A partir daí, a vida do maior poeta brasileiro é uma presença constante e marcante na história de João Pessoa. Em 1900, começa a estudar no Lyceu Paraibano e escreve o seu primeiro soneto: “Saudade”. Em 1901 passa a colaborar com o jornal O Comércio, da capital, onde publica vários sonetos que haveriam de fazer parte do livro Eu e outras poesias.

       Muitas são as datas determinantes em sua vida que o tornaram cada vez mais ligado à esta cidade. Em 1905, amargurou a morte do dr. Alexandre, seu pai. Em 1907 concluiu o curso de Direito no Recife e, no ano seguinte, transferiu-se para João Pessoa, onde passou a dar aulas particulares. Neste mesmo ano, morreu Aprígio Pessoa de Melo, padrasto de sua mãe e patriarca da família, deixando o Engenho Pau Darco em grave situação financeira. Augusto passou a lecionar no Instituto Maciel Pinheiro e foi nomeado professor do Lyceu Paraibano. Os leitores do jornal A União já começavam a se encantar com os sonetos publicados por Augusto. Foi assim com o soneto Budismo Moderno e numerosos outros poemas. No Teatro Santa Roza, nas comemorações do 13 de maio, chocou a platéia com suas palavras aparentemente sem nexo e bizarras. Publicou ainda, em A União, os sonetos Mistério de um fósforo e Noite de um Visionário. Aqui mesmo, casou-se com Éster Fialho. Sua família vende o Engenho Pau Darco e ele, sem conseguir licenciar-se do Lyceu, demite-se e embarca com a mulher para o Rio de Janeiro. Em 1911, Augusto é nomeado professor de Geografia, Corografia e Cosmografia do Ginásio Nacional – atual Colégio Pedro II. Nasce sua filha Gloria. Colabora no jornal O Estado e dá aulas na Escola Normal. Augusto e seu irmão Odilon custeiam a impressão de 1.000 exemplares do livro Eu. A crítica o recebe ao mesmo tempo com aplauso e repulsa.  Nasce seu filho Guilherme Augusto. Em 1914 publica O Lamento das Coisas na Gazeta de Leopoldina, dirigida por seu concunhado Rômulo Pacheco. É nomeado diretor do Grupo Escolar de Leopoldina, para onde se transfere. Doente desde o dia 30 de outubro, faleceu às 4 horas da madrugada do dia 12 de novembro, de pneumonia, aos 30 anos de idade.

        Fiz questão de contar a história da vida de Augusto dos Anjos com a mesma rapidez que ele impôs à sua passagem entre nós.

        Mas ficou patente que ele não tem como fugir das suas profundas raízes com a Paraíba: como todo bom escritor paraibano, estudou no Lyceu, publicou versos em A União e jamais será esquecido pelo seu povo.

        Vida breve... presença eterna.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

COMENTANDO A NOTÍCIA - 09/11/11




A notícia: O ex-governador da Paraíba, Cássio Cunha Lima (PSDB-PB), tomou posse hoje (9) como senador, após ter sua eleição, em 2010, reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal. Cunha Lima teve sua eleição barrada pela Lei da Ficha Limpa, mas diante do entendimento do STF sobre a validade da lei, não atingindo as últimas eleições, foi conduzido ao cargo no lugar de Wilson Santiago (PMDB-PB).

Nosso comentário:
                             
                                     EM NOME DA JUSTIÇA

                 Prometi a mim mesmo, ao divulgar o comentário que fiz , logo após o resultado das eleições de 2010, saudando, com o entusiasmo natural de qualquer eleitor que vibra com a vitória do seu candidato, a confirmação já esperada por mais de um milhão de votantes de que Cássio Cunha Lima estava eleito como Senador da República, que jamais voltaria a comentar uma notícia em nosso país, antes da sua confirmação definitiva e com a certeza de que nada mais poderia impedir a sua concretização.
                 Foi assim que tive a devida paciência para, ao longo dos meses, suportar, sem espernear, tudo o que aconteceu com Cássio e com seus eleitores, deste o dia em que, com base na Lei da Ficha Limpa, o candidato mais votado para Senador no estado da Paraíba não pôde tomar posse no cargo folgadamente conquistado, provocando, não só nele como no seu eleitorado, uma grande e dolorosa frustação.
                  Acompanhei, sem querer acreditar no que estava acontecendo, tudo que se passou até então, com a verdadeira batalha jurídica que se travou em seguida, mas com uma certeza, lá no íntimo, de que, mesmo no Brasil de hoje, com tantos motivos para se duvidar da justiça, os paraibanos que haviam votado em Cássio teriam de reconquistar a sua esperança de que a vitória do povo está na força das urnas.
                Após a posse, o senador Cássio Cunha Lima fez questão de afirmar que não é contra a Lei da Ficha Lima, mas fez um alerta sobre as falhas provocadas pela emoção no momento em que foi aprovada, precisando, assim, de reparos.
             - O que houve, naquele instante – disse Cássio – foi uma necessidade política do Congresso de responder à uma demanda da sociedade. E, como sabemos, a pressa é inimiga da perfeição, e legislação, assim, foi produzida em confronto com a própria legislação.  
                 Tranquilamente, Cássio continuou falando sobre a injustiça sofrida:
                 - Mais do que uma ficha limpa, tenho uma vida limpa. Fui prefeito por três mandatos, governador por dois mandatos e não tenho condenação por improbidade. A punição que sofri foi no campo social, quando a justiça entendeu que um programa nosso, bem parecido com o Bolsa Família, interferiu no resultado da eleição.
                Agora, já devidamente empossado, O que Cássio deve fazer é arregassar as mangas para recuperar o tempo perdido, já que os meses que ele perdeu com uma batalha jurídica, ao invés de estar trabalhando em favor da Paraíba e dos paraibanos, jamais serão recuperados.
              Melhor que ninguém, é o que Cássio sabe fazer melhor: tenho certeza de que aquilo que a gente espera que faça em favor da nossa terra, ele fará, sem dúvida, surpreendendo, como sempre, com sua coragem e com seu dinamismo.
                             

                                                                             

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

CRÔNICA DA SAUDADE - 07/11/2011


                                         
                                           O GENIAL ARY BARROSO



         Logo no começo deste mês de novembro, no dia 7, não existe uma motivação mais forte para uma Crônica da Saudade do que a lembrança da passagem da data que assinala o aniversário de nascimento de um dos maiores compositores do Brasil, autor de músicas consagradas no país e no exterior, que é Ary Barroso.
        Em 2003, no centenário do nasscimento de Ary Barroso, a Rede STV Sesc/Senac foi a única a produzir um documentário especial de 60 minutos sobre  a vida deste brasileiro único, intitulado “O Brasil Brasileiro de Ary Barroso”, com depoimentos de Sergio Cabral, Carminha Mascarenhas, Carmélia Alves, Roberto Luna e a filha do homenageado, Mariúza.
           Ary Evangelista de Resende Barroso nasceu em Ubá, Minas Gerais, na Fazenda da Barrinha, no dia 7 de novembro de 1903. Órfão de pai e mãe, ainda criança, foi criado pela avó materna e por uma tia. Aos 12 anos, já tocava piano no cinema de sua cidade, fazendo fundo musical para filmes mudos. Em 1920, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde formou-se em direito, mas foi sòmente em 1928 – durante uma temporada que passou em Santos e em Poços de Caldas - que começou a compor as suas primeiras produções, como “Eu vou à Penha” e “Vamos Deixar de Intimidade”, que foram bem recebidas pelo público, já que estavam incluídas no seu primeiro disco. Em 1930, Ary venceu o concurso carnavalesco daquele ano com a marcha “Dá Nela”, mas foi com o samba-exaltação “Aquarela do Brasil”, em 1939, que ele se celebrizou, inovando a música popular brasileira, incorporando ao acompanhamento células rítmicas até então só conhecidas em instrumentos de percussão. Em cima da mesma linha patriótica, Ary Barroso compôs outras músicas, igualmente famosas, como “Na Baixa do Sapateiro”, em 1938, “Brasil Moreno”, em 1942, e “Terra Seca”, em 1943. Em 1944, convidado por Walt Disney, Ary Barroso fez a música do filme “Você Já Foi à Bahia ?” e foi premiado pela Academia de Ciências e Artes Cinematográficas de Hollywood.
            Como locutor e cronista esportivo, Ary Barroso fez fama na Rádio Tupi, do Rio (especialmente por torcer abertamente pelo seu Flamengo !), tendo criado, ao longo do tempo, vários programas, dentre eles o “Hora do Calouro” , de onde surgiram alguns dos maiores intérpretes da música popular brasileira, como Elza Soares e tantos outros. Recebeu a Ordem Nacional do Mérito, em 1955, como o mais patriota dos nossos compositores em todos os tempos.
           Morreu no Rio de Janeiro, num domingo de carnaval, no dia 9 de fevereiro de 1964, após dizer, por telefone, ao seu amigo David Nasser: Acho que vou morrer. Estão tocando as minhas músicas no rádio. Ary Barroso virou saudade e, no aniversário do seu nascimento, as suas músicas deveriam ser tocadas por esse Brasil a fora, homenageando, assim, quem tanto, em vida, homenageou a nossa terra.
            Esse Brasil, sem dúvida, que dele recebeu todo o seu amor e toda a sua admiração, através de suas composições que jamais serão esquecidas, deve reverenciá-lo hoje e sempre.

             http://www.youtube.com/watch?v=gycZSBu1yjI

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O CONTO DO MÊS - novembro 2011




              A MORTE DO ALFREDINHO 

     O pior da gente completar setenta anos são as  notícias  que nos chegam sobre a morte de amigos que estão justamente dentro da nossa faixa de idade. Quando menos se espera, aparece alguém pra conversar, trazendo sempre a notícia do falecimento de um conhecido.
              - Sabe quem morreu ?
              - Não.
              - O Alfredinho.
              - Que Alfredinho ?
              - O cardiologista. Aquele que fez teu check-up.
              - O Alfredo Borba ?
              - Ele mesmo.
              - De que foi ?
              - Do coração. Enfarto fulminante.
              A cada notícia dessas, por mais que se procure disfarçar, não dá para esconder o susto que se leva com a tristeza pela morte do amigo e com a incerteza quanto ao que poderá acontecer amanhã.
              Todos nós temos que morrer um dia - raciocinamos. Preciso acostumar-me com esses  porta-vozes fúnebres. Por que devo abalar-me com a morte, se ela é inevitável ?
              E decidimos:
              - Daqui pra frente não vou dar mais a mínima pra isso.
              O que não está nos planos é aquela dor no braço esquerdo, tendo um amigo mais jovem como confidente.
              - Pode ser um torcicolo, não acha ? - perguntamos.
              - Talvez.
              - Que quer dizer com esse “talvez” ?
              - Como sou seu amigo, acho que deve procurar um médico.
              - Besteira.
              - O Alfredinho começou assim. Queixou-se de uma dor no braço esquerdo quando a gente tomava um uísque no bar da sua casa. E olha que ele era cardiologista...
              Temos que ter calma, mas não podemos facilitar. O certo é procurar um médico.
              - Como vai esse grande jornalista ?
              - Com uma grande dor no braço esquerdo.
              - E está com medo, hein ?
              - É que a dor incomoda...
              - Temos a mesma idade. Sei o que sente.
              - Resolvi procura-lo pela amizade que nos une, desde os tempos de colégio.
              - Principalmente agora, com a morte do Alfredinho.
              - Não me fale mais nisso.
              - Vamos fazer um eletro.
              Já que começamos, temos que ir até o fim. O negócio é não se impressionar com as entrelinhas.
              - O eletro deu em ordem.
              - Ainda bem.
              - Mas alguns exames nem tanto.
              - Que quer dizer ?
              - Como vai o cigarro ?
              - Bem, obrigado.
              - Quantos por dia ?
              - Dez... quinze...
              - Procure diminuir. Se não puder deixar o fumo, mantenha o mínimo - apenas o suficiente para acalmar o vício.
              - Tem também a tosse... aquela gosma...
              - Aí não tem jeito. Só deixando o cigarro de vez.
              - Vamos mudar de assunto.
              - Mande despachar esta receita e cumpra as instruções à risca. Vai melhorar da tosse.
              - E no mais ?
           - Não adianta se preocupar com  o resto. Na nossa idade, temos uma expectativa de vida. Com um pouco de cuidado, dá pra alcançar esses anos que nos restam...
              Podemos concluir, depois dessa, que o melhor mesmo é nunca procurar um médico da nossa faixa de idade.
              - Voltou cedo pra casa... Que houve ?
              - Nada, querida.
              - Soube da morte do Alfredinho ?
              - Soube.
              - A Dina me ligou. Foi de repente. Estava tomando um uísque com uns amigos.
              - Eu sei.
              - Vamos ao velório.
              - Temos que ir... mesmo ?
              - Claro. Ele era seu amigo.
              - Essa dor no braço esquerdo...
              - Deve estar cheio de médico por lá. Aproveite e faça uma consulta.
              - De que adianta ? Será que o Alfredinho se esqueceu de se consultar ?
              - Realmente, é desestimulante. Justo o Alfredinho, o melhor cardiologista da cidade, morre do coração.
              - Dizem que foi de repente. Pum. Sem tempo pra nada.
              - É. E ele nunca sentiu dor nenhuma. Principalmente no braço esquerdo.
              - Vou tomar um bom banho.
              Em certos momentos, como no velório de um amigo - especialmente quando esse amigo tinha a mesma idade da gente, e se cuidava bem mais do que a maioria dos mortais, pois era médico -, aí, sim, é que temos que nos fazer de forte.
              - Meus pêsames, Dina. Lamento.
              - Oh, meu Deus... ainda ontem ele falou em você !
              - Falou em mim ? E o que disse ?
              - Disse que estava preocupado com sua saúde... que você precisava se cuidar... que estava  tossindo demais !
              - Ele... disse isso ?
              - Sempre tão preocupado com a saúde dos outros, acabou esquecendo-se da sua.
              Temos que aguentar o choro da família, enxugar as lágrimas da viúva, e aproveitar, ao entrarmos estrategicamente no banheiro, para olharmo-nos ao espelho, o que nos vai deixar mais apavorados ainda.
              - Que houve comigo ? Estou velho !
              Liquidado, a ponto de entrar em pânico, pegou a mulher pelo braço:
              - Despeça-se da Dina. Invente qualquer coisa. Vamos embora.
          No outro dia, nada de enterro. Devemos fugir de cemitério. E mais: quando alguém chegar com uma notícia daquelas, é melhor fugir como o diabo foge da cruz
              - Sabe quem morreu ?
              - Nem sei nem quero saber.
              - Mas é seu amigo...
              - Que tal uma cervejinha gelada no bar da esquina ?
              - Mas...
              - Eu pago.
              Até os setenta, existem a vida e a morte. Depois, só a vida.
              Ou o que resta dela.
              É melhor aproveitar.