terça-feira, 21 de dezembro de 2010

CRÕNICA DA SAUDADE



GUERRA E PAZ


Nascido numa fazenda de café perto da cidade de Brodowsky, em São Paulo, no dia 30 de dezembro de 1903, Candido Portinari, filho de um casal de imigrantes italianos, seria um dos mais importantes pintores brasileiros de todos os tempos.

Na pequena Brodowsky, Portinari freqüentou a escola, mas não foi além do terceiro ano do curso primário. Só que nele já pulsava a vocação artística. Como desenhista, passou a trabalhar como ajudante de um grupo de pintores e escultores italianos itinerantes que viviam de decorar igrejas em cidades do interior.

Mudando-se para o Rio, Portinari logo se matriculou como aluno livre na Escola Nacional de Belas Artes. Aos 26 anos, em 1929, fez sua primeira exposição individual, com 25 retratos, no Palace Hotel do Rio, viajando, neste mesmo ano, para Paris, com uma bolsa de estudos, onde permaneceria até janeiro de 1931, quando retornou ao Brasil já casado com Maria Vitória Martinelli, jovem uruguaia de 19 anos, que seria sua companheira da vida toda e com quem teve seu único filho, João Cândido.

Com apenas um metro e cinqüenta e quatro centímetros de altura – prova mais que cabal que a genialidade de um homem não se mede pelo seu tamanho -, Portinari, com sua primeira mostra nos Estados Unidos, ganhou o prêmio Carnegie, em 1935, dando início a mais bem sucedida carreira de um pintor brasileiro com projeção internacional. Logo em seguida, vieram três grandes painéis para a Feira Mundial de Nova York, em 1939; sua exposição individual no Museu de Arte Moderna de Nova York, em 1940; os quatro painéis para a Biblioteca do Congresso, em Washington; a publicação do primeiro livro sobre sua obra, em 1941, pela Universidade de Chicago; a grande repercussão da sua exposição na Galerie Charpentier, em Paris, em 1946; a exposição itinerante, em Israel, em 1956, e, finalmente, seus monumentais painéis Guerra e Paz, para a sede da ONU, em Nova York, que o tornaram mundialmente conhecido.

Foi no dia 6 de fevereiro de l962, há 48 anos, que Portinari morreu, aos 58 anos, intoxicado pelas próprias tintas que davam vida às suas obras geniais, como se as cores tivessem resolvido pintar a sua alma, tendo, como objetivo, destaca-la, doravante, pelos caminhos sem fim da eternidade.

Cândido Portinari, o menino de Brodowsky, ficou em nossas vidas, pintando coisas e pessoas, deixando mais de cinco mil pinturas, cada uma delas com uma mensagem oculta para a humanidade.

No Guerra e Paz, lá na ONU, faltou alguém que explicasse aos presidentes americanos, de ontem e de hoje, a mensagem que o painel contém, retratando um mundo sem conflitos, possivelmente com os americanos bem longe do Iraque.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O CONTO DO MÊS - DEZEMBRO






O mistério da Serra do Disco

Só não via quem não quisesse. Mas o disco estava lá, no alto da serra, despertando a atenção de todos que observavam, mesmo à distância, aquela obra impressionante, esculpida pela natureza, ao longo de milhões de anos. Era um disco, no melhor estilo desses que aparecem nos filmes de ficção-científica, como se estivesse levantando vôo, dando-se para ver, ao cair da tarde, com o sol por trás da serra, alguns pontos de luz nos buracos existentes, parecendo janelas ilumina- das. Nas proximidades do local, de onde se tinha a melhor visão da estranha formação rochosa, estava o sítio do seu Candinho, velho lavrador, que já aprendêra a conviver com os turistas que o visitavam - tanto que instalára, ao lado da casa, uma pequena e sortida bodega, onde todos podiam encontrar refrigerantes, frutos da região, água de côco e até fotos coloridas da famosa serra, sempre bem atendidos por Dona Santina, sua mulher, ou por um dos seus filhos, o Tião ou a Dorinha, de 18 e 20 anos, respectivamente, ambos sempre bem dispostos, simpáticos e sorridentes. Como o município de Cacimbinha não tinha nada a oferecer ao turista, já que a séde não passava de uma cidadezinha insignificante, com mil e poucos habitantes, sem hotel, sem restaurante e sem coisa alguma que pudesse incentivar alguém a visita-la, o velho lavrador, que de besta não tinha nada, tratou de melhorar as acomodações do seu sítio, tanto que algumas pessoas importantes, como os professores que vieram em um ônibus da Universidade Federal, dormiram em sua casa, ocupando todos os cômodos e o alpendre, onde cerca de dez redes estavam sempre armadas. Ultimamente, no entanto, os turistas vinham rareando cada vez mais e o dinheiro já não dava pras despesas, tanto que seu Candinho, a mulher e os filhos tiveram que voltar a lavrar a terra, coisa que há muito não faziam. Por conta da situação, vivia reclamando, especialmente do prefeito, acusando-o de nada fazer pelo turismo.

- Bom dia, Candinho - disse o prefeito Zé Tobias, fazendo uma visita ao seu compadre e amigo, logo cedinho.

- Num tem nada de bom, cumpade Tobia. A coisa puraqui tá cuma a cantiga da pirua: de má a pió. E tu num faz nada, hôme de Deus. Num mexe nem uma palha. De vez im quano é qui aparece um visitante... - disse, em tom de arenga, o seu Candinho.

- Tu sabe que eu não posso fazer nada - tentou explicar o prefeito. Só tem turismo, onde tem dinheiro pra se fazer propaganda e onde existe um mínimo de condições que a gente possa oferecer ao turista. E o que é que a gente tem aqui ? Nem uma coisa nem outra. Nem di nheiro, nem hotel, nem estrada, nem coisa nenhuma. Cacimbinha fica a mais de 600 quilômetros da capital. Isso não passa de uma cidadezinha perdida e esquecida nos cafundós desse sertão medonho. A gente não pode fazer nada e turista que tiver juizo não bota o pé por essas bandas.

- É... eu tô de cabeça quente porque deixei de ganhá um bom dinheirinho, mai reconheço qui é difice trazê as pessoas pro mode vê a Serra do Disco - reconheceu o agricultor, cabisbaixo.

- A não ser...

- A não sê o que, cumpade ?

- A não ser que um disco-voador de verdade aparecesse, ali, na serra !

- Ah, cumpade, isso num vai acontecê porque a gente sabe qui essa históra é invenção do povo...

Sem nem sequer apear-se do cavalo, o prefeito Zé Tobias fez a volta, deu rédeas ao animal e se despediu:

- Até mais ver, compadre. Tenha fé que a coisa melhora.

- Inté mais vê, cumpade - respondeu seu Candinho, com um riso de descrença nos lábios e balançando a cabeça negativamente.

À noite, antes de dormir, conversava com a mulher e os filhos.

- O prefeito acha que percisa de dinheiro pro mode trazê turista e a Prefeitura num tem um tostão furado... - lamentou-se.

- A gente tem que tê fé im Deus, Candinho. Se a gente tivé fé, a coisa mióra.

- Tão ouvino, mininada ? Todo mundo rezano pro mode vê se aparece um disco puraqui ! - disse, dirigindo-se ao Tião e à Dorinha, que já estavam quase dormindo, deitados em suas redes.

Por volta das dez da noite, o Chico Fumaça, com seu inseparável cachimbo no canto da boca, estava sentado, no batente do seu casebre, observando o céu estrelado e pensando na sua vidinha sem sentido, quando, sem querer acreditar no que via, observou, no alto da Serra do Disco, um intenso clarão, que iluminou as cercanias e, após alguns segundos, desapareceu.

- Maria... tu visse ? - perguntou , quase sem voz, à mulher, que estava à janela.

- Vi, Chico. Te disconjuro. Qui diacho foi aquilo ? - quis saber.

- O disco da serra... ele se acendeu ! O disco se acendeu !

No dia seguinte, não se falava em outra coisa: o Chico Fumaça e a dona Maria tinham visto o disco-voador ficar todo iluminado, como se quisesse voar. Outras figuras, menos confiáveis, tambem afirmavam que o clarão ocorrêra, e até acrescentavam que a enorme pedra em forma de disco se elevára ao céu e retornára ao tôpo da serra. Um fuzuê dos diabos tomou conta de Cacimbinha e, como era previsto, na noite daquele dia, quase toda a população da cidade se postou no terreiro do seu Candinho para ver a estranha luz. E o fenômeno não se fez de rogado: por volta das dez e meia, um novo e intenso clarão iluminou a serra, provocando um frisson no seio da platéia. E não se falou em outra coisa até o nascer do dia.

Quando foi chamado ao posto telefônico, o Prefeito Zé Tobias nem queria acreditar no que a telefonista dizia:

- Seu Tobia, o hôme da televisão quer falá com o sinhô !

E não ficou só numa emissora de televisão, não. Logo, outra manteve contáto. E mais outra. Durante todo o dia, o prefeito não fez outra coisa, senão atender a telefonemas de editores de jornais e revistas que queriam confirmar o aparecimento de um OVNI em Cacimbinha.

- É verdade, meu amigo - dizia a todos, entusiasmado, o prefeito -, os habitantes da cidade testemunharam a presença do bicho no alto da serra !

Enquanto Zé Tobias e seu Candinho comemoravam o inesperado acontecimento, que haveria de trazer, além da imprensa, milhares de turistas ao município, o sargento Donato, delegado da cidade, desconfiado por natureza, resolveu fazer as suas investigações.

- Isso não tá cheirando bem...

Acompanhado por dois soldados, o delegado subiu a serra e lá, em volta da enorme pedra, encontrou, logo de cara, os indícios que procurava.

- Como imaginei - disse consigo mesmo -, aqui estão as marcas dos fogos de artifício. Alguem colocou uma girândola por trás da pedra e, quando ela foi acêsa, provocou o clarão que todo mundo viu. E eu já sei quem foi que fez isso...

De volta à cidade, mandou chamar Tião e Dorinha, os filhos do seu Candinho, à sua presença.

- Não adianta negar - foi logo dizendo, com firmeza, o sargento. Foram vocês que botaram a girândola no alto da serra e iluminaram o disco com o clarão dos fogos. Já estive com Zé Fogueteiro e ele me disse que forneceu o material. Até entendo tenham feito isso pensando em ajudar ao seu pai. Mas o que fizeram foi uma trapaça.

Cabisbaixos, demonstrando que estavam envergonhados com o que fizeram, os dois adolescentes alegaram que só estavam tentando ajudar os negócios do pai, fazendo com que os turistas voltassem a visitar Cacimbinha. E prometeram que nunca mais voltariam a preparar ou tra armação igual.

- Mandei chama-los aqui para que saibam que não podem enganar a polícia - explicou o delegado. Mas como a coisa já tá feita e a imprensa de todo o país está vindo para cá, juntamente com milhares de turistas, resolvi não tornar público o que vocês fizeram. E até limpei todos os rastros de pólvora deixados em volta da pedra. Como é para o bem de Cacimbinha, resolvi deixar o dito pelo não dito. Só que vocês vão prometer que nunca mais farão o que fizeram !

Com Tião e Dorinha jurando, de mãos postas, que jamais voltariam a preparar tal armação, o delegado logo estava na rua principal, tentando controlar o trânsito, já que centenas de automóveis, ônibus e caminhões começavam a invadir a cidade, conduzindo jornalistas, técnicos e locutores de TV, e turistas, vindos da capital e de outras cidades de estados vizinhos.

O prefeito Zé Tobias e seu Candinho não cabiam em si de contentes, ante o alvorôço das pessoas, que já pretendiam, à noite, estar a postos, para presenciar, com seus próprios olhos, a aparição do disco-voador.

E foi assim que, por volta das dez da noite, o terreiro da casa do seu Candinho estava apinhado de pessoas que portavam binóculos e até lunetas, esperando o momento do clarão, de fotógrafos, com suas máquinas prontas para disparar, e repórteres de TV a postos, com suas câmeras apontadas para a Serra do Disco.

Quando já passava das onze horas, surgiu um clarão no céu, iluminando completamente o alto da serra. Enquanto todos observavam aquilo, sem querer acreditar no que seus olhos viam, o facho de luz foi descendo ao lado da pedra, aumentando de intensidade a cada movimento que fazia, permanecendo ali por quase dois minutos, até que se elevou por alguns metros e, como uma flecha de fogo, em velocidade vertiginosa, desapareceu no firmamento.

Enquanto todos comentavam o fáto e os repórteres de TV descreviam o que acabavam de ver, o delegado, irritado, pensava:

- Tião e Dorinha... eles não cumpriram o juramento ! Fizeram de novo !

Só que, ao virar-se, notou que os adolescentes estavam, ali, quietinhos, às suas costas.

- Não fomos nós... - disse o Tião.

- Foi um disco de verdade, sargento Donato ! - acrescentou a Dorinha, assustada.

- Um disco de verdade... - repetiu o homem da lei, completamente zonzo com o inusitado acontecimento.

Ao ser entrevistado pela televisão, o delegado, ainda sem saber como explicar o ocorrido, repetia sempre a mesma declaração:

- Todo mundo viu o que aconteceu... a luz que veio do céu... o disco luminoso ao lado da pedra, no alto da serra... e a luz, cada vez mais brilhante, levantando vôo e desaparecendo entre as estrelas ! Todo mundo viu e ninguem sabe dizer o que houve. Eu tambem não sei explicar o que vi. Mas que algo muito estranho ocorreu aqui, não resta a menor dúvida !

Todo aquele reboliço continuou pela madrugada, sem que ninguem conseguisse conciliar o sono.

E o delegado Donato, ao voltar para casa, ainda viu, por alguns minutos, no céu, uma pequena luz ao longe, no firmamento.

Como se estivesse a seguir seus passos.

Sentou-se no batente da casa e ficou olhando para o alto por alguns instantes.

Como se quisesse entender o que se passára.

Com a certeza que não poderia mais duvidar de coisa alguma nesse mundo de Deus.

Nem de disco-voador.





A CHARGE DA SEMANA - 14/12/2010








CRÔNICA DA SAUDADE – 13/12/2010



MAIS UM 13 DE DEZEMBRO

Antes de morrer, Luiz Gonzaga – o nosso Gonzagão de eterna memória – tentou sintetizar, num verso, o seu nascimento e disse o seguinte:

“Meu nome é Luiz Gonzaga,/não sei se fui fraco ou forte,/só sei que graças a Deus/ inté pra nasce tive sorte,/apois nasci im Pernambuco,/famoso Leão do Norte./Nas terras do novo Exu/Da Fazenda Caiçara,/Im novecentos e doze/Viu o mundo a minha cara./Dia de Santa Luzia/purisso é qui sô Luiz/ – no mês qui Cristo nasceu -/ purisso é que sou feliz !”

Nascido no dia 13 de dezembro de 1912, na Fazenda Caiçara, em Exu, distante mais de 600 quilômetros do Recife, Luiz Gonzaga foi o segundo dos nove filhos do casal Januário José dos Santos e Ana Batista de Jesús (a mãe Santana). Tendo vindo ao mundo dividido entre a enxada e sanfona, o menino cresceu, observando seu pai animando bailes e consertando velhas sanfonas, sonhando ser sanfoneiro, coisa que dona Santana não queria nem ouvir falar. Mas Luiz costumava acompanhar o pai em diversos forrós, revesando-se com ele na sanfona e ganhando seus primeiros trocados.

Foi a partir de 1953 que Luiz Gonzaga passou a se apresentar trajado com as roupas típicas do sertão nordestino: na cabeça, o chapéu de couro (inspirado no famoso Virgulino Ferreira, o Lampião, de quem era admirador), no corpo, o gibão e outras peças características da indumentária do vaqueiro nordestino. Em suas mãos, como sempre, a inseparável sanfona branca – a sanfona do povo.

Intérprete de alguns dos maiores sucessos da nossa música regional, como Asa Branca, Ovo de Codorna, Boiadeiro e tantos outros, o nosso Lua, se ainda estivesse vivo, estaria com 94 anos de idade, com idade bastante para não mais cantar em público.

Gonzagão faleceu no dia 2 de agosto de 1989, no Recife, mas enquanto viveu... enquanto esteve entre nós... enquanto participou da vida de todos os brasileiros, transformando em alegria cada uma das suas apresentações em público... e deixando, depois, como bendita herança, todas as suas músicas que tanto exaltaram o nordeste. Luiz Lua Gonzaga foi mais do que um grande cantor... um genial compositor... e um musicista perfeito... ele foi, sem dúvida, o artista que personificou o próprio Nordeste.

Por muitos anos ainda, o Brasil inteiro vai comemorar o dia do seu nascimento, lembrando tudo o que Luiz Gonzaga, como autor e intérprete da música popular nordestina, representou para nosso povo.

Símbolo da nossa gente, Gonzagão continua vivendo na saudade do nosso povo, que não consegue esquecer todos os momentos alegres que viveu ao seu lado.

Que sua presença seja eterna como sua música.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

CRÔNICA DA SAUDADE - 09/12/2010



UM LAGO ENCANTADO


Mário Lago foi um dos mais autênticos radialistas que já conheci. Já famoso como compositor, poeta, escritor, teatrólogo e ator, ele se vangloriava de só se sentir em casa, realmente, quando estava ali, nos estúdios da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, ao lado dos colegas de profissão, como pude vê-lo, no início dos anos 60, preparando-se para gravar um dos capítulos de mais uma de suas famosas novelas radiofônicas. Com aquele seu jeitão de filosófo e de profeta, costumava dizer: O meu orgulho é ser radialista.

Pertencente à uma família de músicos, Mário Lago não tinha como não ser um grande e talentoso compositor. Filho do maestro Antonio Lago, Mário nasceu no Rio de Janeiro, no dia 26 de novembro de 1911. Seus avós, tanto o materno Giuseppe Croccia, quanto o paterno, José Lago, eram músicos. Ambos tiveram grande influência na trajetória de vida de um dos mais consagrados compositores da música popular brasileira.

No dia 26 de novembro, em todo o Brasil – quando Mário, se estivesse vivo, completaria 99 anos – ninguém verá ou ouvirá um único registro em jornais, revistas, emissoras de televisão ou de rádio, a respeito de uma data tão importante, que não deveria jamais ser esquecida, principalmente pelos veículos que tanto lhe devem , como a Rede Globo.

Era advogado, mas praticamente não exerceu a profissão, preferindo escrever para o então florescente teatro-de-revistas, onde produziu peças de sucesso, tornando-se, ao mesmo tempo, um excelente compositor e um ator genial, tendo se tornado um dos mais renomados galãs do teatro de comédia brasileiro nos anos 40. Quem pode negar seu talento invulgar como compositor, quando lembramos alguns dos seus maiores sucessos, como Ai que saudade da Amélia e Atire a Primeira Pedra, que Ataulfo Alves imortalizou ? E como teria sido o carnaval brasileiro sem a sua Aurora, marchinha que ficou para sempre ? E o nosso cancioneiro romântico como teria ficado sem o fox Nada Além, sucesso nacional com Orlando Silva, além de outras paginais imortais na voz do “cantor das multidões”, como Dá-me Tuas Mãos e Número Um, ou aquele maravilhoso Devolve, interpretado por Carlos Galhardo ? E que dizer do samba-canção Fracasso, que se imortalizou na voz de Francisco Alves ? E aquele É Tão Gostoso, seu Moço, sucesso com Nora Ney ? E o belíssimo Rua Sem Sol, com Ângela Maria ?

Radiator e autor de programas radiofônicos de grande repercussão, Mário Lago foi um dos expoentes máximos da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Politicamente, no entanto, fez parte dos quadros do Partido Comunista Brasileiro por 50 anos e, por causa de sua intensa militância política, sofreu represálias durante a ditadura Vargas e a ditadura militar, tendo sido preso em várias ocasiões. A partir de 1966, passou a atuar, como ator, nas novelas da Rede Globo, onde se consagrou nacionalmente.

Morreu no dia 31 de maio de 2002, no Rio, mas a sua memória não deve ser esquecida: Mário Lago é uma daquelas pessoas que nasceram pra viver para sempre. Como um lago encantado. Ali. À nossa frente. Onde se possa admira-lo a todo instante, com suas águas calmas e serenas. Eternamente.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

CRÔNICA DA SAUDADE – 08/12/2010




BORBOREMA – 6O ANOS

Quando cheguei à Rádio Borborema de Campina Grande, em 1955, no alvorecer da minha juventude e com a vibração natural dos meus 16 anos, não tinha como controlar a emoção que me dominava: ali estava diante do prédio da emissora que eu tanto admirava, atendendo a um chamado de um verdadeiro mito da radiofonia campinense, que era Fernando Silveira, o diretor-artístico famoso, para que eu me submetesse a testes de redação e de microfone. Sem me fazer de rogado, escrevi alguns textos e li alguma coisa ao microfone, evitando o mais possível olhar de frente para Fernando, que ali estava, julgando-me, com toda a sua experiência e todo o seu talento de novelista sem igual e de intérprete aplaudido por todos.

Aprovado no teste, já pronto para começar a produzir programas para a Borborema, compareci ao trabalho, pela primeira vez, participando de uma reunião que iria definir, no dia 8 de dezembro que se aproximava, o sexto aniversário da emissora.

A partir daí, passei a viver uma vida inteira dedicada ao rádio, ajudando a desenvolver uma programação vibrante, voltada para cultura em todos os sentidos e para os interesses do povo campinense. A Borborema, na época, era o centro das atenções de toda uma região. Com suas ondas curtas e médias, dominava, com seus programas, locutores, cantores, músicos e atores, a audiência de dezenas de municípios que se agrupavam em volta de Campina. Quem não conhecia as vozes de Hilton Mota, Gil Gonçalves, Ary Rodrigues, Eraldo César, Luismar Rezende, Paulo Rogério, Germano Ramalho, Themistocles Maciel e de tantos outros locutores ? Quem não aplaudia e se emocionava com as novelas de Fernando Silveira, vibrando com o desempenho de Eliza César, Silvinha de Alencar, Janete Alves, Maria do Carmo, Edileusa Siqueira e tantas outras radio-atrizes ? E os programas de auditório, verdadeiras festas populares, como o Clube Papai Noel, aos domingos, pela manhã, com a presença de centenas de crianças ? E o humorístico A Escola do Nicolau, de Eraldo César, que fazia rir toda a cidade, bem antes da escolinha do Chico Anísio ?

Vejo-me de novo escrevendo e ensaiando cada um dos mais de dois mil capítulos - que consegui escrever e levar ao ar – do seriado As Aventuras do Flama, que fez parte da vida de milhares de crianças , hoje homens-feitos, mas que ainda recordam, com carinho, seus emocionantes capitulos.

E quantas homenagens prestei na crônica diária Bom Dia Para Você, lida sempre na voz famosa de Hilton Mota, com sua interpretação impecável ? E A Voz dos Municípios, programa comandado pelo saudoso Félix Araújo ?

A Radio Borborema, que completa 60 anos, neste dia 8 de dezembro, faz parte da vida e da história da cidade de Campina Grande e tem participação efetiva no desenvolvimento cultural e artístico do seu povo.

Da minha vida, ela não só fez parte, como fez questão de gravar tudo para sempre – na memória dos seus ouvintes – de onde ninguém pode apagar.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

terça-feira, 30 de novembro de 2010

CRÔNICA DA SAUDADE - 30/11/2010


O BRASIL DE ARY BARROSO


Logo no começo deste mês de novembro, no dia 7, fiquei devendo aos nossos leitores, uma crônica que enfocasse a passagem de mais um aniversário de um dos maiores compositores do Brasil, autor de músicas consagradas no país e no exterior, que é Ary Barroso.

Em 2003, visando divulgar o centenário do nascimento do velho Ary, convidei, através da Rádio Tabajara, todas as emissoras paraibanas, para que, naquela data, formassem uma rede musical, tocando, durante todo o dia, as músicas que tornaram conhecido em todo o mundo, não apenas o seu autor, mas – e principalmente – o seu país... a terra onde nasceu... o Brasil – já que o seu amado rincão sempre foi o tema preferido do compositor.

Ary Evangelista de Resende Barroso nasceu em Ubá, Minas Gerais, na Fazenda da Barrinha, no dia 7 de novembro de 1903. Órfão de pai e mãe, ainda criança, foi criado pela avó materna e por uma tia. Aos 12 anos, já tocava piano no cinema de sua cidade, fazendo fundo musical para filmes mudos. Em 1920, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde formou-se em direito, mas foi sòmente em 1928 – durante uma temporada que passou em Santos e em Poços de Caldas - que começou a compor as suas primeiras produções, como “Eu vou à Penha” e “Vamos Deixar de Intimidade”, que foram bem recebidas pelo público, já que estavam incluídas no seu primeiro disco. Em 1930, Ary venceu o concurso carnavalesco daquele ano com a marcha “Dá Nela”, mas foi com o samba-exaltação “Aquarela do Brasil”, em 1939, que ele se celebrizou, inovando a música popular brasileira, incorporando ao acompanhamento células rítmicas até então só conhecidas em instrumentos de percussão. Em cima da mesma linha patriótica, Ary Barroso compôs outras músicas, igualmente famosas, como “Na Baixa do Sapateiro”, em 1938, “Brasil Moreno”, em 1942, e “Terra Seca”, em 1943. Em 1944, convidado por Walt Disney, Ary Barroso fez, nos Estados Unidos, a música do filme “Você Já Foi à Bahia ?” e foi premiado pela Academia de Ciências e Artes Cinematográficas de Hollywood.

Como locutor e cronista esportivo, Ary Barroso fez fama na Rádio Tupi, do Rio (especialmente por torcer abertamente pelo seu Flamengo !), tendo criado, ao longo do tempo, vários programas, dentre eles o “Hora do Calouro” , de onde surgiram alguns dos maiores intérpretes da música popular brasileira, como Elza Soares e tantos outros. Recebeu a Ordem Nacional do Mérito, em 1955, como o mais patriota dos nossos compositores em todos os tempos.

Morreu no Rio de Janeiro, num domingo de carnaval, no dia 9 de fevereiro de 1964, após dizer, por telefone, ao seu amigo David Nasser: Acho que vou morrer. Estão tocando as minhas músicas no rádio.

Ary Barroso virou saudade e, no aniversário do seu nascimento, as suas músicas deveriam ser tocadas por esse Brasil a fora, homenageando, assim, quem tanto, em vida, homenageou a nossa terra.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

CRÔNICA DA SAUDADE – 22/11/10


O ETERNO TROVADOR


No dia 9 deste mês de novembro, não pude deixar de lembrar que, naquela data, no ano de 1983 – há 27 anos, portanto – morria de um derrame, em pleno show numa boate de Nova York, nos Estados Unidos, com apenas 43 anos de idade, o maior trovador da música brasileira e um dos maiores das Américas: Altemar Dutra.

O que mais marcou os seus fãs pessoenses, naquela época, é que Altemar havia se apresentado, fazia poucos dias, em um show na Lagoa do Parque Sólon de Lucena, causando emoção e arrancando aplausos entusiásticos de uma verdadeira multidão que se fez presente, cantando, com seu artista preferido, alguns dos seus maiores sucessos musicais. E quando sua voz ainda ecoava no coração dos pessoenses, eis que chegou a trágica notícia: Altemar Dutra, o trovador das Américas, havia falecido em Nova York, vítima de um derrame cerebral.

Mineiro da cidade de Aimorés, no interior de Minas Gerais, Altemar Dutra de Oliveira nasceu no dia 6 de outubro de 1940, mas logo mudou-se, ainda pequeno, para a cidade de Colatina. Logo cedo, demonstrou vocação para a música, tendo recebido, da mãe, como forma de incentivo, um violão, que logo começou a dedilhar e acabou por aprender a toca-lo sòzinho. E foi assim que se apresentou pela primeira vez em público, participando de um programa na Rádio Difusora de Colatina, onde ganhou o primeiro lugar, passando, a partir daí, a fazer sucesso na cidade, o que o incentivou a viajar, com apenas 17 anos, para o Rio de Janeiro, onde chegou, em 1957, levando uma carta de apresentação para o compositor Jair Amorim, que passou a promove-lo no meio artístico. Começou a cantar na Boate Bacarat, mas como era menor de idade, tinha que se esconder, vez por outra, do Juizado de Menores. A convite de Helena de Lima, passou a cantar na boate Cangaceiro, uma das mais famosas da cidade. Foi quando fez amizade com várias artistas já consagrados, como é o caso do Trio Iraquitã, cujo crooner o levou para a Odeon, em 1963. No mesmo ano, seu primeiro grande sucesso: Tudo de Mim, de Evaldo Gouveia e Jair Amorim. A partir daí, gravou outros grandes sucessos da mesma dupla, como Que queres tu de mim ?, O Trovador e Somos Iguais.Em 1965, surgiu o LP Sentimental Demais, cuja música-título se tornou uma marca do seu repertório. Em 1966, ainda da dupla Jair Amorim e Evaldo Gouveia, gravou Brigas, tendo declarado, num programa da Rede Globo, que é com essa música que gostaria de ser lembrado no futuro. À essa altura, seu sucesso já extrapolava as fronteiras brasileiras, chegando à toda a América Latina, com apresentações em vários países. As versões em espanhol dos seus grandes sucessos venderam mais de 500 mil cópias. Com o LP O Trovador das Américas, em 1969, Altemar se firmou como um dos maiores cantores latinos de todos os tempos, cantando ao lado dos grandes ícones do bolero, como é caso de Lucho Gatica. Após vários LPs de sucesso, gravou, em 1977, Sempre Romântico, e, em 1981, Eu Nunca Mais Vou Te Esquecer, dois discos realmente marcantes em sua carreira.

Altemar Dutra se foi, mas a sua saudade, através da musica, ficou para sempre no coração e na memória de todos os seus fãs, espalhados por esse imenso Brasil.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

A CRÕNICA DA SEMANA - 17/11/2010



ÚLTIMA PÁGINA

Sempre me apeguei a alguns veículos da imprensa brasileira, graças, principalmente, aos seus cronistas. Por causa de Rubem Braga, colecionei, por muito tempo, as edições do Diário da Noite, jornal editado no Rio, em tamanho tablóide, que embora não fosse tão bom quanto O Globo em se tratando de notícia, era primeiro sem segundo para mim por causa das crônicas do meu cronista preferido. E só parei de colecionar o jornal porque, num certo dia, ele deixou de circular.

Com a revista O Cruzeiro não foi diferente: rendi-me aos encantos da revista, como um todo, indo das reportagens de David Nasser ao Amigo da Onça, do meu amigo Péricles, mas não tinha como fugir à sua principal atração, ao pedacinho da edição que me cativava tanto e que, por capricho da natureza, ficava em sua última página: as crônicas, sempre belas e humanas, escritas por Rachel de Queiroz.

Era a única revista que muita gente, como eu, começava a ler por sua última página, de trás para frente, pois era lá, na última página, que estava a crônica de Rachel.

Nascida em 17 de novembro de 1910, em Fortaleza, no Ceará, Rachel de Queiroz se destacou como escritora, publicando os livros O Quinze, As Três Marias, Lampião e tantos outros, além das peças teatrais A Beata Maria do Egito e O Menino Mágico, obras premiadas nacionalmente.

Cronista emérita, publicou mais de duas mil crônicas, cuja seleção de algumas delas proporcionou a publicação dos seguintes livros: A Donzela e a Moura Torta, 100 crônicas escolhidas, O Brasileiro Perplexo e O Caçador de Tatu.

Tendo sido a primeira mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras- eleita para a Cadeira nº 5, em 4 de agosto de 1977, na sucessão de Cândido Mota Filho – Rachel de Queiroz foi recebida, em 4 de novembro de 1977, pelo acadêmico Adonias Filho, acabando, de uma vez por todas, com o famoso clube do Bolinha (onde menina não entrava) da nossa maior academia.

Em suas crônicas, contava, com simplicidade, as novidades da semana e conquistava, à cada história que relatava, a admiração de milhares de leitores. No dia de ontem, 04 de novembro, os brasileiros lamentaram os três anos de saudades de Raquel, desde o dia em que Deus a levou do nosso convívio com a mesma tranqüilidade com que ela sempre viveu entre nós.

Naquele dia fatídico, ela se deitou para dormir, pensou em Deus como sempre e adormeceu - para nunca mais acordar.

E foi assim que Rachel de Queiroz passou a viver o sonho da eternidade.



sexta-feira, 12 de novembro de 2010

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A CRÔNICA DO DIA – 12/11/2010



PRESENÇA DE AUGUSTO

Não há como separar o poeta da sua terra natal. Por mais que ele tenha vivido no sul do país, a sua história, como a sua sombra, teria de ficar aqui.

Augusto Carvalho Rodrigues dos Anjos nasceu logo ali, em Cruz do Espírito Santo, no dia 20 de abril de 1884, filho de Alexandre Rodrigues dos Anjos e de Sinhá Mocinha – dona Córdula de Carvalho Rodrigues dos Anjos. A partir daí, a vida do maior poeta brasileiro é uma presença constante e marcante na história de João Pessoa. Em 1900, começa a estudar no Lyceu Paraibano e escreve o seu primeiro soneto: “Saudade”. Em 1901 passa a colaborar com o jornal O Comércio, da capital, onde publica vários sonetos que haveriam de fazer parte do livro Eu e outras poesias.

Muitas são as datas determinantes em sua vida que o tornaram cada vez mais ligado à esta cidade. Em 1905, amargurou a morte do dr. Alexandre, seu pai. Em 1907 concluiu o curso de Direito no Recife e, no ano seguinte, transferiu-se para João Pessoa, onde passou a dar aulas particulares. Neste mesmo ano, morreu Aprígio Pessoa de Melo, padrasto de sua mãe e patriarca da família, deixando o Engenho Pau Darco em grave situação financeira. Augusto passou a lecionar no Instituto Maciel Pinheiro e foi nomeado professor do Lyceu Paraibano. Os leitores do jornal A União já começavam a se encantar com os sonetos publicados por Augusto. Foi assim com o soneto Budismo Moderno e numerosos outros poemas. No Teatro Santa Roza, nas comemorações do 13 de maio, chocou a platéia com suas palavras aparentemente sem nexo e bizarras. Publicou ainda, em A União, os sonetos Mistério de um fósforo e Noite de um Visionário. Aqui mesmo, casou-se com Éster Fialho. Sua família vende o Engenho Pau Darco e ele, sem conseguir licenciar-se do Lyceu, demite-se e embarca com a mulher para o Rio de Janeiro. Em 1911, Augusto é nomeado professor de Geografia, Corografia e Cosmografia do Ginásio Nacional – atual Colégio Pedro II. Nasce sua filha Gloria. Colabora no jornal O Estado e dá aulas na Escola Normal. Augusto e seu irmão Odilon custeiam a impressão de 1.000 exemplares do livro Eu. A crítica o recebe ao mesmo tempo com aplauso e repulsa. Nasce seu filho Guilherme Augusto. Em 1914 publica O Lamento das Coisas na Gazeta de Leopoldina, dirigida por seu concunhado Rômulo Pacheco. É nomeado diretor do Grupo Escolar de Leopoldina, para onde se transfere. Doente desde o dia 30 de outubro, faleceu às 4 horas da madrugada do dia 12 de novembro, de pneumonia, aos 30 anos de idade.

Fiz questão de contar a história da vida de Augusto dos Anjos com a mesma rapidez que ele impôs à sua passagem entre nós.

Mas ficou patente que ele não tem como fugir das suas profundas raízes com a Paraíba: como todo bom escritor paraibano, estudou no Lyceu, publicou versos em A União e jamais será esquecido pelo seu povo.

Vida breve... presença eterna.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O CONTO DO MÊS - NOVEMBRO


O trigéssimo primeiro tiro
Quando alguém contratava os serviços do Zé das Cruzes, podia ficar tranquilo: era tiro e queda - a família da vítima que tratasse de escolher o caixão.

- Até hoje, ele não errou um só tiro: seu fuzil disparou trinta vezes e trinta encomendas foram devidamente entregues - dizia Pedro Vaqueiro, exaltando as virtudes do pistoleiro. Pode contratar o homem, patrão, que ele dá conta do recado.

- E quanto à língua dele, Pedro ? Sabe guardar segredo ? - quis saber o coronel Hortêncio, rico fazendeiro daquela região do interior pernambucano.

- Sem querer fazer trocadilho, coronel, o das Cruzes é como um túmulo. Acabado o serviço, tudo aquilo, pra ele, é como se não tivesse acontecido.

- Pelo visto, o homem não tem defeito.

- Só tem um: cobra caro. O senhor não vai conseguir com que ele mate a prefeita por menos de 30 mil. Se fosse um vereador, ficaria em torno de 15.

- Prefiro pagar mais e continuar tranquilo. Diga-lhe que quero falar com ele.

- Terei que ir pessoalmente ao Ceará. Dentro de dois ou três dias ele estará por aqui.

- Tome o cheque da sua viagem. Passe pelo banco, retire o dinheiro e só me chegue aqui com o pistoleiro. Essa mulherzinha vai aprender a não se meter com o coronel Hortêncio !

Sem dizer mais nenhuma palavra, Pedro Vaqueiro saiu da casa grande da fazenda, montou o cavalo e partiu em direção a cidade, deixando o coronel sentado na cadeira de balanço, alisando a barba, pensativo, como se antevesse o prazer de vingar-se da prefeita de Flores, dona Matilde, mulher-macho, dessas que topam qualquer parada, que chegam a dar um boi pra não entrar numa briga, mas que são capazes de dar uma boiada para não sair. Na última eleição, a contra gosto, é bem verdade, já que a mulher estava declaradamente eleita, o coronel deu o seu apoio de última hora, tentando botar água fría na antiga briga por causa de uns impostos não pagos pelo fazendeiro e sempre cobrados pela mulher que, na gestão anterior, era Secretária da Fazenda. Tão logo tomou posse como prefeita, dona Matilde, no seu primeiro discurso, tendo o coronel ao seu lado, prometeu cobrar o dinheiro do povo que estava no bolso de meia dúzia de fazendeiros, ricos e caloteiros. Ante os aplausos da multidão, o poderoso coronel Hortêncio desceu do palanque fumaçando de raiva e, a partir dali, uma guerra sem tréguas estava declarada.

- Essa maldita prefeita vai deixar de me esnobar ! - rosnou, trincando os dentes.

E não era de hoje que a dona Matilde o esnobava. Tendo ficado viúva, quase quinze anos, ao morrer o doutor Euclides, o marido, em um acidente de automóvel, ela era uma jovem e linda mulher - encantadora, morena de olhos verdes e cabelos negros como uma noite escura , que vivia enlouquecendo os corações dos homens. Durante quase um ano, o coronel Hortêncio fez de tudo para conquistá-la, chegando, até mesmo, a pedi-la em casamento, mas acabou por descobrir que o amor da dona Matilde era algo que nem os seus bois nem o seu dinheiro podiam comprar. Fiel à memória do falecido, tornou-se querida e respeitada na cidade, a ponto de se eleger prefeita com larga margem de votos. Vingativo, o desprezado fazendeiro passou a persegui-la, dificultando a sua administração, mas recebendo, em troca, com amparo legal, uma implacável cobrança de impostos, antes sonegados, que a Secretária da Fazenda de ôntem e a prefeita de hoje queria receber a todo custo.

- Em vez de dinheiro, ela vai receber uma bala ! - pensou o coronel, olhando uma foto da mulher, com dois olhos faiscando de fogo.

Após uma viagem que durou dois dias, Pedro Vaqueiro retornou à fazenda e se apresentou ao coronel, embora já fosse tarde da noite.

- O homem tá aí, coronel.

- Não quero perder mais tempo. Mande-o entrar.

Alguns minutos após Pedro sair, a porta foi aberta e o pistoleiro, assim que entrou, tornou a fechá-la, ficando a sós com o fazendeiro.

- Aqui estou, coronel.

- Aproxime-se.

Era uma figura por demais estranha. Todo vestido de preto, alto e magro, com um grosso bigode sobre os lábios finos, o que se destacava, na palidez do seu rosto, eram seus olhos negros e fríos, quase sem brilho. Por fora da camisa, volteando o pescoço e se dependurando sobre o peito cabeludo, uma corrente de ouro, onde vários crucifixos se amontoavam. Trinta, com certeza. Um para cada serviço feito.

- Sente-se.

- Não disponho de muito tempo, coronel. Gostaria que fosse direto ao assunto.

- Quero que mate a prefeita daqui.

- É pra logo ?

- O mais rápido que puder. Hoje... amanhã...

- Amanhã, se ela estiver na cidade.

- Está. Ela sempre está na cidade.

- Endereço, nome e foto.

- Tá aqui, neste envelope. Deixe para abrir no hotel. No outro envelope, está seu dinheiro.

- O senhor é bom de negócio, coronel, mas eu também sou. Pode considerar morta essa mulher. Eu nunca falho. Foram trinta tiros disparados por este fuzil e trinta mortes. O tiro pode ser na cabeça ou no coração. Pode escolher.

- Fique à vontade.

- Hoje, à noite, dormirei nas montanhas, pra não levantar suspeita. Amanhã, cedinho, estarei de volta, sem que ninguém me veja. À tarde, essa mulher sairá do seu caminho.

- Boa sorte.

- A sorte nunca deixou de estar do meu lado. Boa noite.

- Boa noite.

Como se fizesse parte da escuridão, Zé das Cruzes botou uma mochila nas costas e, segurando o fuzil, logo se afastou, confundindo-se com as sombras que dominavam todo o caminho, rumo às montanhas.

Numa gruta, acendeu uma vela, retirou da mochila um lençol, acendeu um cigarro, deitou-se sobre uma pedra e começou a abrir o envelope. Ao retirar o papel onde estava a foto e alguns dados sobre a sua vítima, sentiu um estremecimento. Ficou mais pálido ainda. A respiração se tornou ofegante. Aproximou a vela para ver melhor. Não queria acreditar no que via.

- Matilde ! - exclamou, num grito abafado.

Transtornado, quase em pânico, pôs as mãos na cabeça num gesto de desespero, enquanto algumas lembranças, que julgava esquecidas, começaram a aparecer, na semi-escuridão da caverna, com perfeita nitidez, refazendo cenas de um passado distante, como se estivessem acontecendo naquele exato momento.

- Não pode ser... Matilde !

Eles eram jovens e estavam perdidamente apaixonados. Numa cidadezinha do interior da Paraíba, o confronto de classes. Ela, filha de um juiz de direito. Ele, um zé-ninguém, sem ter onde cair morto, filho de um simples vaqueiro e de uma lavadeira, ambos trabalhando na casa do pai da moça. Tendo que trabalhar na roça, mal aprendera a ler. Matilde, por sua vez, tivera educação esmerada, preparava-se para entrar na universidade da capital, de onde somente sairia formada em direito, como o pai. Cortejada pelo doutor Euclides, com cujo namoro o pai se encantava, embora fosse bem mais velho que a filha, que chance teria o pobre do Zé, sem possibilidade de oferecer à sua amada futuro nenhum ? Por mais que se amassem , a diferença de classes acabaria falando mais alto, apesar das negativas de Matilde:

- O nosso amor será maior que tudo. Minha família terá que entender. Nós nos amamos ! - dizia, aflita.

Às ocultas, continuaram se encontrando por algum tempo, até que um dia, o pai descobriu tudo e passou a mantê-la em casa, como uma prisioneira. Procurado pelo delegado, Zé recebeu o conselho:

- O juiz pode acabar com sua vida, Zé. Pode metê-lo na prisão.

- Desde quando amar é crime, delegado ?

- Desde que a pessoa amada seja a filha de um juiz, que detém, nas mãos, mais poderes do que pode imaginar. Caia fora. Desapareça. Será melhor pra você.

Revoltado, o Zé foi embora. Virou matador. Buscou outros caminhos. Mudou seu destino.

Como pistoleiro, jamais havia voltado a encontrar-se com a mulher da sua vida. Agora, estava ali, naquela caverna escura, diante de um dilema. A seu modo, tornara-se famoso. A sua fama era tanta que virára lenda. Mas uma coisa era certa: nunca, desde que disparára o primeiro tiro, deixára de cumprir um trato. Foram 30 acertos, 30 tiros, 30 mortes. Jamais falhára com a palavra dada. Até aquele instante. Com o rosto de Matilde projetado na semi-escuridão, ainda jovem e sorridente, angustiava-se ante a possibilidade de matá-la. Justamente ela - o único e verdadeiro amor de toda a sua vida.

Não conseguiu mais dormir naquela noite longa, e foi assim, cansado e insone, que viu a madrugada chegar. Já de pé, foi ao encontro da luz. Por alguns instantes, recebeu os primeiros raios do sol, como se quisesse exorcizar os fantasmas daquela noite angustiante.

Fuzil à mão, mochila às costas, começou a caminhar em direção à cidade.

Diante da casa da prefeita, sentou-se por trás de um pedregulho, de onde, sem que ninguém o visse, tinha uma visão estratégica das pessoas que ali se encontravam. Por uma janela aberta, pôde rever, em rápidos lances, depois de tantos anos, a sua Matilde. E ela continuava linda co-mo antes, parecendo mais forte e majestosa, em seu porte de rainha. Pela mira telescópica do fuzil, observou melhor o seu rosto, os seus olhos, a sua boca tantas vezes beijada.

E tomou uma decisão.

- Que faz aqui ? - perguntou, assustado, o coronel Hortêncio.

- Precisava conversar a sós com o senhor. Quero que desfaça o trato que fizemos. Vim devolver seu dinheiro.

- Nada disso, cabra - disse o fazendeiro, recuperando a calma. Fizemos um trato. Trate de cumpri-lo ou não sairá daqui com vida.

Um único tiro atingiu o coronel na testa, deixando-o, por alguns segundos, de olhos arregalados, de pé, sem dizer mais nada, até que caiu pesadamente no chão.

Enquanto o pistoleiro saltava pela janela, ganhava o telhado da casa e descia mais adiante, ultrapassando o cercado da fazenda, os capangas do fazendeiro, tendo a frente o Pedro Vaqueiro, conseguiam abrir a porta da sala e davam de cara com o patrão, em meio à uma poça de sangue, já sem vida.

Antes de buscar as montanhas e fugir dali, não se conteve: parou diante de Matilde, que se encaminhava para a prefeitura, com alguns dos seus secretários.

- Bom dia, prefeita.

Apenas por segundos seus olhos se encontraram, mas foi o bastante para que a mulher sentisse algo diferente - um misto de alegria e de tristeza, que não sabia explicar.

- Bom dia, senhor.

Sem perder tempo, Zé das Cruzes se afastou rapidamente e logo tomou os caminhos das montanhas, desaparecendo, como por encanto.

Por instantes, dona Matilde ainda procurou lembrar-se de onde conhecera o estranho que a cumprimentára e que a tocára com o seu olhar. Os mesmos olhos do seu filho. Aquele que nascêra antes do seu primeiro casamento e que nunca conhecêra o pai: um qualquer que, um dia, fugira da sua vida para nunca mais voltar.

Mas que fôra, sem dúvida, o amor da sua vida.